Um tribunal absolveu hoje uma mulher que, ao fim de 30 anos de uma vida de tormentos e reclusão, matou o marido, seu agressor e carcereiro. Segundo o advogado de defesa da ré, nesse dia ele tinha tentado matá-la a ela e às duas filhas, tendo pleno fundamento a alegação de legítima defesa. Contou ainda que, pelo terror das agressões, aquela mulher nunca tinha podido viver uma vida normal, que não saía à rua, não conhece as coisas mais simples da liberdade de movimentos.
Não sei qual é o grau de terror que é preciso demonstrar para ser aceite a legítima defesa num caso destes. Mas lembro-me que era estudante em Direito quando fomos visitar a prisão de Tires, onde pudemos falar com as presas, e onde me chamou a atenção uma mulher ainda nova, que tinha ao pé de si a filha de 6 anos. Perguntei-lhe o que a tinha condenado e qual o tempo que havia de cumprir e respondeu-me com um ar de desafio, com a altivez de quem não aceita crítica, nem espera compreensão:
- Matei-o. Envenenei o monstro. Fui condenada a 8 anos de prisão mas isso é só o resto da minha pena, a maior cumpri enquanto vivi com ele, eu e a menina a sofrermos maus tratos e privações de toda a ordem. E, quando sair daqui, sei que estamos livres dele…
Nunca me esqueci daquela mulher, do modo como falou, o crime dela contra o crime dele, a coragem de matar para não se deixar morrer ou a cobardia de ir matando com persistência, sem culpa nem remorso, por loucura ou malvadez, por demência certamente.
Julgar um caso destes, decidir que os dois crimes sejam equiparados, reconhecendo-se a legítima defesa, é um acto de justiça e coragem, que mostra como afinal as mentalidades sempre mudam e que talvez um dia venha a ser possível a todas as vítimas da violência doméstica defender-se e ser defendidas sem recurso ao “quem com ferro mata com ferro morre”.
6 comentários:
Cara Suzana,
Amanhã, o supremo, vai alegar que a mulher gostava de apanhar e que, uma vez morto, o agressor não pode comprovar que ia matar a mulher e as filhas. Finalmente, vai condenar a mulher por homicídio.
Ou não, e a justiça portuguesa começou a funcionar ontem e nós não percebemos...
"e que talvez um dia venha a ser possível a todas as vítimas da violência doméstica defender-se e ser defendidas sem recurso ao “quem com ferro mata com ferro morre”"
Como este é um blog de opinião e as opiniões se direccionam às matérias dos post e não às convicções pessoais, opino.
Aquela afirmação conclusiva é utópica.
Justifico esta afirmação, chamando a a tenção para o facto de os actos serem praticados por seres humanos, esse facto, por si só, não redime a justiça da obrigatoriedade de fundamentar as sentenças na lei escrita.
Achamos sempre por defeito, que a justiça, na avaliação de casos semelhantes ao descrito, peca por insensatez, por desumanização, esquecendo-nos porém que se o critério de julgamento fosse arbitrário, estaríamos perante uma injustiça maior.
Mais, ainda, verificamos, infelizmente com frequência, que casos semelhantes aos descritos, comuns, infelizmente à relaidade de vida de bastantes pessoas, quando denunciado às autoridades, bate de frente contra uma barreira borocrática, um vazio legislativo e uma incongruência social, que anula a capacidade de defesa e a possibilidade de protecção àquelas vítimas.
È o país que temos, constiuído pela sociedade que merecemos, ou... vice-versa.
Caro Tonibler, espero que não cheguem à conclusão de que "tudo começou quando ela reagiu...", vamos acreditar que alguma coisa está de facto a mudar.
Caro Bartolomeu, toda a actividade política deve ser baseada nessa utopia de que é possível, um dia, ter um mundo perfeito, caso contrário acabamos por nos acomodar à fatalidade da imperfeição e a aceitar apenas um maior ou menor grau dela.É claro que deste caso não se pode extrair nenhuma regra absoluta, até porque a legítima defesa tem condições muito específicas que devem ser demonstradas exactamente para não se poder justificar a simples retaliação. Se as coisas funcionassem como deve ser, a defesa das vítimas devia ser suficiente para que elas não tivessem que recorrer à justiça por mãos próprias. Não é, nem pode ser, admitido que cada um o faça, o que acontece é que há casos manifestos em que falha essa protecção e em que "seguir as regras" só vai causar o irreparável.Esta sentença deve ser muito interessante de ler.
PAROLES, PAROLES, PAROLES!
PAROLES, PAROLES, PAROLES!
Oooppss, enganei-me no blog!
Suzana
Julgo que o caso a que se refere é o da mulher julgada no Tribunal de São João Novo, no Porto. Vale a pena reflectir sobre algumas das declarações das partes envolvidas:
- Juiz:
"A Senhora ao longo de 40 anos sofreu com isto tudo e não era nesta altura que ia chamar a polícia. As pessoas estão em casa, vivem com a agressão e após a queixa é que começa o verdadeiro inferno".
"A senhora teve sorte".
"A Senhora tem ainda muitos anos pela frente, aproveite a vida".
- Senhora absolvida
"Foram muitos anos de sofrimento e acho que este meu caso pode servir de exemplo a outras mulheres, embora eu considere que o melhor, desde que seja possível, seja a denúncia junto das autoridades".
Sim, Margarida, o juíz deve ter ficado mesmo muito chocado com o que viu no processo e ouviu no julgamento. O caso ainda é mais espantoso porque as duas filhas adultas, de trinta e tal anos, também viviam sob esse terror, não percebo como é que é possível exercer essa tirania sobre 3 adultos durante uma vida inteira.
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