Conheço muitas pessoas que carregam a dor da tragédia, a perda de um amado ou a falta de um amigo embrulhados em papel de esquecimento, duro, rugoso, o suficiente para esconder o conteúdo durante o tempo que lhes resta na incessante procura de futuras, mas fugidias, belas memórias. Uma forma de “esquecer”, que a mente humana sabe utilizar, relegando as más memórias para lugares onde não possam causar muitos danos, uma bênção. Abençoado esquecimento, fingido, mas, mesmo assim, duplamente abençoado. Que seria de nós se não fossemos capazes de esconder o sofrimento fechando-o a sete-chaves nas gavetas da memória? Enlouquecíamos!
É pena que esta capacidade em não recordar se estenda a outras situações. Nos últimos tempos têm sido relatados casos de pessoas idosas que morreram esquecidas, que não é mais do que a expressão de uma faceta cruel da forma de ser e de estar de muitos humanos. Muitos esquecem-se dos mais idosos, outros esquecem-se, rapidamente, de quem lhes deu a mão em momentos cruciais, há quem se esqueça do seu passado, substituindo-o por algo grandiloquente e falsamente aristocrático, há os que nunca se lembram dos feitos dos seus, há também os que se entretêm a apagar o passado dos outros, recriando-o a seu belo e despudorado prazer e há os que gozam em apagar a memória do futuro, roubando-a ou afogando-a, por antecipação, no esquecimento. São muitos os ladrões e os tipos de roubos da memória. E há os que, infelizmente, se esquecem de si próprios, porque a natureza assim o determinou ou a sua dedicação a outrem o exigiu.
Não vejo razão para tanta admiração com os “mortos do esquecimento”. A construção da sociedade é feita nessa base, no esquecimento. Esquecer sempre. Se olharmos em redor, vemos preocupantes sinais de esquecimento, caso de muitas pessoas, entre os quais jovens, esquecidos e humilhados por uma sociedade sem memória. Estão à espera de que um dia cultivarão a memória? Para quê?
Prezo muito a memória, apesar de começar a detetar alguns buracos por onde tendem a escapar belas recordações. Tento retê-las, vivê-las, reformulá-las e até inventá-las. Há memórias que inventamos, porque é a única forma de viver certos momentos dos quais não temos outra forma de os recordar. Vivemos muitos acontecimentos ao longo da vida, mas muitos só adquirem significado no presente, e outros ainda têm de esperar pelo futuro, para que consigamos vê-los com olhos de ver. As memórias não são estáticas, vivem e modificam-se com o tempo. Quando abordo algumas das minhas memórias, confesso que não são descrições rigorosas dos factos que vivi na altura com os sentidos do corpo ou a paixão da alma, nem podiam ser, são descritos com a nostalgia e a saudade do presente, uma forma meio impressionista de pintar os quadros da memória e de memória. O que eu pretendo é despertar sentimentos e transmitir alguma beleza, aproveitando o esquecimento ao substituir o que falta e a transformar o que ainda resta numa criação da alma.
Até os meus mortos, que não esqueço, se apresentam hoje com aspetos diferentes, moldados pelo tempo, pelas vivências e por um belo esquecimento, esquecimento que alivia a dor armazenada na memória, mas que ajuda a saborear o prazer de um momento, momento esse que espera transformar-se um dia em memória e em esquecimento...
É pena que esta capacidade em não recordar se estenda a outras situações. Nos últimos tempos têm sido relatados casos de pessoas idosas que morreram esquecidas, que não é mais do que a expressão de uma faceta cruel da forma de ser e de estar de muitos humanos. Muitos esquecem-se dos mais idosos, outros esquecem-se, rapidamente, de quem lhes deu a mão em momentos cruciais, há quem se esqueça do seu passado, substituindo-o por algo grandiloquente e falsamente aristocrático, há os que nunca se lembram dos feitos dos seus, há também os que se entretêm a apagar o passado dos outros, recriando-o a seu belo e despudorado prazer e há os que gozam em apagar a memória do futuro, roubando-a ou afogando-a, por antecipação, no esquecimento. São muitos os ladrões e os tipos de roubos da memória. E há os que, infelizmente, se esquecem de si próprios, porque a natureza assim o determinou ou a sua dedicação a outrem o exigiu.
Não vejo razão para tanta admiração com os “mortos do esquecimento”. A construção da sociedade é feita nessa base, no esquecimento. Esquecer sempre. Se olharmos em redor, vemos preocupantes sinais de esquecimento, caso de muitas pessoas, entre os quais jovens, esquecidos e humilhados por uma sociedade sem memória. Estão à espera de que um dia cultivarão a memória? Para quê?
Prezo muito a memória, apesar de começar a detetar alguns buracos por onde tendem a escapar belas recordações. Tento retê-las, vivê-las, reformulá-las e até inventá-las. Há memórias que inventamos, porque é a única forma de viver certos momentos dos quais não temos outra forma de os recordar. Vivemos muitos acontecimentos ao longo da vida, mas muitos só adquirem significado no presente, e outros ainda têm de esperar pelo futuro, para que consigamos vê-los com olhos de ver. As memórias não são estáticas, vivem e modificam-se com o tempo. Quando abordo algumas das minhas memórias, confesso que não são descrições rigorosas dos factos que vivi na altura com os sentidos do corpo ou a paixão da alma, nem podiam ser, são descritos com a nostalgia e a saudade do presente, uma forma meio impressionista de pintar os quadros da memória e de memória. O que eu pretendo é despertar sentimentos e transmitir alguma beleza, aproveitando o esquecimento ao substituir o que falta e a transformar o que ainda resta numa criação da alma.
Até os meus mortos, que não esqueço, se apresentam hoje com aspetos diferentes, moldados pelo tempo, pelas vivências e por um belo esquecimento, esquecimento que alivia a dor armazenada na memória, mas que ajuda a saborear o prazer de um momento, momento esse que espera transformar-se um dia em memória e em esquecimento...
5 comentários:
Caro Professor Massano Cardoso:
Excelente texto, agradavelmente profundo perturbador e inquietante, transversal à sociedade em geral e ao momento, são as palavras que me ocorrem expressar…
PS: Tomei a liberdade de replicar.
Caro Professor Massano Cardoso
Mais um belíssimo e profundo pensamento sobre a vida. É importante que de vez em quando não nos esqueçamos dos "esquecimentos" que nos trás à reflexão.
Há esquecimentos belos, mas há esquecimentos cruéis. Ambos retratados no seu texto. E, portanto, não podem ser admirados ou reprimidos de igual forma.
Como o Professor diz, muitas vezes temos que nos alhear da nossa memória e das nossas recordações, e por momentos esquecer, para que consigamos superar a dor ou não voltar a sofrer. É para nossa própria defesa. Mas não é um esquecimento egoísta.
Mas há esquecimentos, como aquele que nos lembra sobre as pessoas idosas, que mais não são do que atitudes de desprezo e de ingratidão. Esquecimentos que não trazem sofrimento a quem os cultiva, mas sim àqueles que são vítimas de tais comportamentos. Estão do lado oposto aos "belos esquecimentos" que nos fazem crescer a alma e ser mais humanos.
Há “escrevidores” que escrevem muito bem, que usam um vocabulário complicado e de tão complicado que é acabam por transmitir uma frieza que nos agonia. Outros, ah, outros escrevem com a alma, com o sentimento , com um estilo arrebatador que deixam os seus leitores numa ansiedade à espera de mais escritos... : )
As recordações são moldáveis. Moldam-se consoante a nossa maturidade, o nosso estado de espírito; dá-se um retoque aqui outro acolá e acabam por ser “vivências” com vertendes ligeiramente diferentes ao longo da nossa vida... A grandiosidade do alvo da nossa recordação pode até tomar proporções mais modestas mas mais calorosas. Mas não vejo justificação aceitável para as pessoas que já não estão connosco caiam no esquecimento e muito menos as vivas que acabam por perecer sós, completamente sós, sem um afago, sem um carinho num momento de sofrimento, de solidão. Como é que nós, como sociedade, chegámos a esta fase de distanciamento, de frieza, de egocentrismo...
... "vertentes" em vez de vertendes, claro!
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