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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Há 50 anos, em Luanda

As duas crianças encolhiam-se nas suas camas como pequenos novelos, o sono não chegava apesar das palavras suaves dos pais, podem dormir, está tudo bem, já passou tudo.
Mas a tensão que pairava no ar era terrível e, mesmo de olhos bem fechados, as duas irmãs podiam sentir o medo espalhado por todo o lado, como uma capa densa a tolher os movimentos, a turvar os olhares e a paralisar os sorrisos moles com que as queriam entreter.
Nos dias e semanas anteriores toda a vida pacata de Luanda se tinha virado do avesso. Havia tumultos nas ruas, a velha Rosa lavadeira dormia agora na casa ao fundo do quintal porque o seu musseque tinha sido incendiado, do Norte chegavam notícias aterradoras, em breve seguidas do cortejo de refugiados que tinham largado tudo atrás de si para salvarem a vida. Nesse mesmo dia as duas crianças ainda tinham ido à escola, mas a D. Dina olhava temerosa a porta que dava para o pátio e mandava fechar, os meninos que brincassem na sala de aula. Em cima da secretária, ao lado do ponteiro e da temível palmatória de madeira, estava agora uma pistola escura e pesada que a professora mantinha ao alcance de um gesto súbito.
Os civis tinham desistido de esperar o reforço das tropas e forças de segurança que guardariam pessoas e haveres contra os revoltosos, de Lisboa apenas um silêncio total que primeiro surpreendera, depois indignara e, por fim, levara a agir. Formaram-se milícias para proteger cada bairro, cada rua, cada casa e, armados e organizados, os homens montavam guarda, dia e noite, em pontos estratégicos da cidade. Um desses pontos estratégicos era a casa daquela família, uma casa nova de linhas arrojadas, janelas amplas e uma varanda larga no primeiro andar, a cercar todos os quartos, um ponto de observação excelente que permitia circular a toda a volta, para perscrutar o horizonte, sem ser visto por quem estivesse na rua.
As duas crianças não conseguiam dormir. Tinham-nos visto chegar ao longo do dia, vizinhos, amigos e conhecidos, sabiam quem eram mas eles agora apareciam de cara fechada e arma em punho, espingardas, pistolas, cintos com balas, entravam na sua casa nova como se fosse deles e subiam para a varanda, onde montavam guarda.
As duas crianças ouviam os passos surdos na sua ronda inquieta, viam os vultos das sentinelas a sombrear as janelas do quarto e estremeciam, de vez em quando, ao clac-clac seco do movimento dos gatilhos, às vezes um tiro de aviso, espantando ainda mais o sono. Fazia-se então um silêncio absoluto no escuro da noite, suspensa do medo. Depois, intermináveis instantes depois, começavam a brilhar no escuro os pontinhos móveis dos cigarros acesos, a circular ao longo da varanda, enquanto soava em surdina a voz dos homens em guarda, distendidos num breve instante a avaliar o momento de perigo.
E a criança mais pequena esperava ansiosa a voz da irmã, na cama ao lado, a dar o sinal de tréguas, já acenderam os cigarros, não tenhas medo, a mãe disse que quando há perigo eles apagam os cigarros, agora podemos dormir. Agarrava-se com força ao seu inseparável boneco de peluche e pedia-lhe, sem falar, que lhe contasse uma história bonita muito depressa, para ela adormecer antes que os pontos brilhantes se apagassem de novo na vigília da varanda e, em seu lugar, se reacendesse o medo.

9 comentários:

Bartolomeu disse...

A irresponsabilidade daqueles que entregaram Angola e Moçambique àos partidos revoltosos, sem cuidarem da segurança de todos que empenharam as suas vidas e dos seus familiares, na construção de um império, deu resultados inenarráveis.
Acerca da construção da bomba atómica e das guerras, Einstein dizia: "Assumi portanto as minhas responsabilidades. E no entanto sou apaixonadamente um pacifista e a minha maneira de ver não é diferente diante da mortandade, em tempo de paz. Já que as nações não se resolvem a suprimir a guerra por uma ação conjunta, já que não superam os conflitos por uma arbitragem pacífica e não baseiam o seu direito na lei, elas vêem-se inexoravelmente obrigadas a preparar a guerra.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Fantástica memória de criança! Um relato que nos traz à lembrança uma guerra brutal que tantos portugueses vitimou. Para quê?
Acompanho o comentário do nosso Caro Bartolomeu.

José Soromenho-Ramos disse...

Uma pequena história comovente, com o sentimento e os detalhes que fazem a grande literatura. A angustia dos inocentes atropelados pelo desfazer dum império que merecia um fim mais digno, um tema que ainda não foi tratado com a multiplicidade de vozes que permitiria escrever o contraponto final da saga trágico-marítima de outrora. É preciso continuar. JSR

jotaC disse...

Cara Dra. Suzana Toscano:
Mais uma excelente narrativa, no sguimento de muitas outras, a que já nos habituou.
Subscrevo o comentário do caro Caged Albatross e acrescento que o pior drama da guerra, seja ela qual for, é o terror causado às crianças. Todos já vimos, em cenários de guerra, crianças aterrorizadas, de olhos esbugalhados e em estado de choque... Não é difícil portanto imaginar o terror destas duas crianças, habituadas a uma vida calma e segura, ouvirem à distância de escassos metros o som estrondoso das armas...

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Maria Brandão de Brito disse...

Cara Suzana,
Que grande momento de proza! A Suzana é, digo-o com toda a franqueza, das minhas contistas predilectas.

Este seu texto transportou-me a lugares da memória que julgava apagados e conduziu a minha imaginação a essa casa, nessa terra onde nunca estive, mas que agora sei ao que cheira.

Anónimo disse...

Suzana, aqui ao meu lado, a Isabel revive e partilha de momentos e sentimentos através do seu magnífico texto.

Suzana Toscano disse...

Caro Bartolomeu, o tempo de tomar uma decisão não suspende a vida tem que continuar, cada hora, cada minuto, os acontecimentos não esperam e muitos são sacrificados nesse entretanto. Os juízos históricos são sempre difíceis, mas para quem vive os dramas fica sempre esta certeza de que as soluções chegam tarde para muita gente.
Margarida, é um pequeno flash a lembrar que os resumos históricos deixam sempre tanta coisa de fora. Ao ler as notícias sobre o assalto à prisão de Luanda, no dia 4 de Fevereiro de 1961, lembrei-me que a história dentro da minha própria casa, naquele dia e nos que se seguiram, durante muitos outros até virmos embora, fazia falta.
Caro cagedalbatroz, tem razão, levou muito tempo até que estes testemunhos, e outros bem mais dolorosos, pudessem ser contados e ouvidos, mas eles completam os acontecimentos e fazem parte da nossa memória colectiva. Há 50 anos, é como se tivesse sido ontem.
Caro jotac, sempre amável nos seus elogios, muito obrigada. É verdade que as crianças sofrem terrivelmente, de repente tudo em que acreditavam se desfaz e, mesmo que não sofram fisicamente, há qualquer coisa que nunca mais se recupera completamente, aquela certeza de que estão seguras e tudo se vai resolver por milagre. Mas hoje penso sobretudo na aflição dos adultos, o que seria ter a família ali, as crianças tão pequenas, toda a sua vida a ter que continuar, o trabalho, sair de casa, procurar comida, garantir a segurança, e pensarem que a vida dos seus dependia deles, da sua coragem e das suas decisões, entregues como estavam á sua sorte? Terrível.
Caro Paulo, esses momentos out of africa são preciosos, não há nada como nos sentirmos fora do nosso pequeno mundo em que pensamos que controlamos tudo. Tem razão, sobretudo quando as coisas começam nunca se sabe que fim terão, mesmo que esteja tudo muito planeado, os planos são só isso mesmo, depois o fim é a realidade que o dita.
Caro Brandão de Brito, seja muito bem reaparecido, já sabe que aqui no 4r tentamos fazer o melhor possível, fico muito contente por ver que às vezes agradamos aos nossos leitores . Quando é que retoma a sua actividade aqui no grupo? Já sentimos a falta!
Zé Mário, um grande abraço à Isabel, se ela quiser prontifico-me já para acrescentar às minhas as memórias dela, as memórias gostam imenso de companhia...
E obrigada a todos!

José Maria Brandão de Brito disse...

Cara Suzana,
Tinha razão quando dizia que escrever no 4r se tornaria no vício. A vontade de escrever uns posts persegue-me quotidianamente. Duas razões explicam a minha ausência: menos tempo extra-trabalho e o inverno, que traz as asmas, bronquiolites e quejandos, que me sugam quase todos os minutos dos fins de semana. Na verdade, acumulo mais de uma dezena de posts que por falta de tempo não consegui acabar. Dito isto, espero tornar-me mais assíduo.
Um abraço