Cheguei a casa, mostrei as garrafas e mandaram-me despachar a quinquilharia para Santa Comba. O habitual, onde meter tanta coisa? Em Santa Comba. Um dia terei de ter um espaço próprio para “expor” os meus cacos, velharias e quejandos que vou adquirindo sem sentido, a não ser o despertar de alguma emoção estética de momento ou do passado. Tinha-as ainda comigo, no consultório, a aguardar um espaço qualquer numa arrecadação, quando acabaram de ser alvo de atenção, por parte de um doente e que originou uma conversa interessante.
Gosto de conversar com os doentes, não todos, mas alguns, confesso, são fonte de inspiração e, habitualmente, acabamos por contar histórias e historietas de encantar.
O casal de idade entrou e o homem oferece-me um saco de plástico. – Aqui está como lhe prometi. Era uma garrafa, mas cheia, claro. - E eu julgava que os médicos não bebiam! – Qual quê! Se for bom, por que não? Rimo-nos ao redor deste cumprimento, meio malicioso e coloquei o saco junto do outro. – Ah, mas o senhor doutor já recebeu outra? - Eu?! Não! Tirei uma das garrafas e mostrei-lhe: - Sabe o que é isto? – Uma garrafa de pirolito! Onde é que arranjou uma coisa dessas que já não via há tanto tempo? Expliquei-lhe a minha ida a Miranda. Mas nem me deu tempo para acabar e interrompeu-me dizendo: - Por causa dessas garrafas levei umas boas tareias do meu pai. Quando era miúdo, o senhor doutor ainda não era nascido, enchia-as com carbureto, juntava-lhe água e atirava para o rio. Uma granada. Aquilo arrebentava e o pessoal apanhava o peixe. O senhor doutor sabe o que era o carbureto? – Não sei eu outra coisa, oh A.! Entretanto, já tinha observado a mulher, cuja tensão arterial estava normalizada, e que, à disputa com o marido, disse-me: - Fizemos uma aposta, os dois, para ver quem é que tem a mais baixa. – Não me diga! Disse-lhe. Quando comecei a examiná-lo, o A., empolado pelas “granadas de pirolito”, começou a contar que uma vez, em Angola, no decurso da guerra, era tropa especial, lançou uma granada ofensiva enquanto estava no meio do rio. – Senti um choque elétrico no corpo, senhor doutor, que nem lhe digo. Eu não sei porquê, porque nunca estudei para isso, mas o pior foi um peixe, era tão grande que eu ao aproximar-me acabei por levar com a cauda. Olhe, talvez não acredite, mas a porrada foi tal que tiveram de me tirar do rio. Nesse momento, tinha acabado de lhe medir a tensão arterial e estava alta, mais alta do que a da mulher. – Perdeu a aposta! Ficou com ar muito admirado, porque é um bom doente. Foi então que lhe disse: - Vamos repetir, para ver se está ou não verdadeiramente elevada. A segunda, a terceira e a quarta vez revelaram valores normais e inferiores à da mulher. Ficou todo satisfeito, o valor elevado da primeira vez coincidiu com a lembrança da pancada do peixe grande no rio. Deve ter sido verdade, pensei eu, só assim se explica a variação acentuada. A partir daqui passámos a falar sobre formas pouco habituais de pescar. Como tinha andado no mesmo quartel que ele, eu como oficial miliciano médico e ele como sargento de carreira, mas quinze anos mais velho, perguntei-lhe se recordava do capelão P. – Claro que me recordo. Então, expliquei-lhe que, num sábado de tarde, estava eu de serviço num maldito fim-de-semana, vejo-o a entrar na base com o seu carro amarelo. – Oh doutor venha cá. Quer ver a pescaria da tarde? Eu aproximei-me e, nesse momento, levanta a porta da bagageira. Fiquei com os olhos arregalados. Estava cheia de peixes. – Como conseguiu esta proeza? – Simples, muito simples! Uma granadazita e já está. – Olhei para ele estupefacto, até porque era quem era, mas antecipou-se a qualquer crítica, dizendo: - Tenho de alimentar esta tarde o pessoal amigo. Uma forma moderna de multiplicação dos peixes. Dito isto, afastou-se em toda a sua glória. O A. ria-se, porque sabia que era prática comum. Subitamente, começou a tocar o sino a finados. Desconhecíamos ambos o eleito, mas mesmo assim fui obrigado a dizer: - Não aprecio muitos os velórios, mas têm uma vantagem. – Qual, senhor doutor? – Ouvir boas histórias. Está a ver, as pessoas vão até lá, falam um pouco, depois de dizerem que o defunto era uma excelente pessoa e que deixa muita saudades – aliás nunca ouvi nada em sentido contrário -, e como não se veem há muito, aproveitam o tempo para recordações. Num desses velórios, e por causa da pesca, cá fora, no adro da igreja, sob um sol sem calor, falava-se de pescarias e pescadores. Era cada um que só visto. O melhor, para mim, foi a história de C., um primo do meu pai, pedreiro de profissão, que, ao fim da tarde, quando regressava a casa, e passava o rio a vau, apanhava os peixes debaixo das pedras à mão. Um especialista na arte. Mas o melhor é que o pedreiro dava, previamente, uma valente marretada na pedra com o seu instrumento de trabalho, atordoando-os. Dizem que sim, que era verdade. – Essa é boa! Nunca tinha ouvido. Disse o A. – Pois olhe que eu ouvi, mas se foi ou não verdade, não sei dizer. – A rapaziada daquele tempo era endiabrada. O meu pai contou-me que uma tia, em nova, no princípio do século passado, ia lavar a roupa ao rio, e, ao fim da tarde, antes de regressar, misturava pão com cocaína, que se comprava nas farmácias daquele tempo para tratar as dores. Parece que os peixes ficavam tolinhos de todo e ela apanhava-os à mão e metia-os no alguidar, debaixo da roupa. Naquele tempo era proibido apanhar peixes, mas não era proibido comprar cocaína! E assim se passou um bom pedaço da consulta, ficando a promessa de que um dia destes iria até à sua aldeia, para ouvir e contar algumas histórias. - Mas não se esqueça de que temos de alimentar e dar de beber ao corpo. Dizia-me o A. – Está bem, assim que os dias ficarem mais compridos e mais quentinhos lá irei.
O que é certo é que ambos andam muito controladinhos das suas maleitas. Quase que me atreveria a dizer que os melhores doentes, os que aderem bem às terapêuticas são excelentes comunicadores e gostam de histórias e, também, de participarem nas mesmas. Uma boa terapia para os doentes e para mim, naturalmente.
Gosto de conversar com os doentes, não todos, mas alguns, confesso, são fonte de inspiração e, habitualmente, acabamos por contar histórias e historietas de encantar.
O casal de idade entrou e o homem oferece-me um saco de plástico. – Aqui está como lhe prometi. Era uma garrafa, mas cheia, claro. - E eu julgava que os médicos não bebiam! – Qual quê! Se for bom, por que não? Rimo-nos ao redor deste cumprimento, meio malicioso e coloquei o saco junto do outro. – Ah, mas o senhor doutor já recebeu outra? - Eu?! Não! Tirei uma das garrafas e mostrei-lhe: - Sabe o que é isto? – Uma garrafa de pirolito! Onde é que arranjou uma coisa dessas que já não via há tanto tempo? Expliquei-lhe a minha ida a Miranda. Mas nem me deu tempo para acabar e interrompeu-me dizendo: - Por causa dessas garrafas levei umas boas tareias do meu pai. Quando era miúdo, o senhor doutor ainda não era nascido, enchia-as com carbureto, juntava-lhe água e atirava para o rio. Uma granada. Aquilo arrebentava e o pessoal apanhava o peixe. O senhor doutor sabe o que era o carbureto? – Não sei eu outra coisa, oh A.! Entretanto, já tinha observado a mulher, cuja tensão arterial estava normalizada, e que, à disputa com o marido, disse-me: - Fizemos uma aposta, os dois, para ver quem é que tem a mais baixa. – Não me diga! Disse-lhe. Quando comecei a examiná-lo, o A., empolado pelas “granadas de pirolito”, começou a contar que uma vez, em Angola, no decurso da guerra, era tropa especial, lançou uma granada ofensiva enquanto estava no meio do rio. – Senti um choque elétrico no corpo, senhor doutor, que nem lhe digo. Eu não sei porquê, porque nunca estudei para isso, mas o pior foi um peixe, era tão grande que eu ao aproximar-me acabei por levar com a cauda. Olhe, talvez não acredite, mas a porrada foi tal que tiveram de me tirar do rio. Nesse momento, tinha acabado de lhe medir a tensão arterial e estava alta, mais alta do que a da mulher. – Perdeu a aposta! Ficou com ar muito admirado, porque é um bom doente. Foi então que lhe disse: - Vamos repetir, para ver se está ou não verdadeiramente elevada. A segunda, a terceira e a quarta vez revelaram valores normais e inferiores à da mulher. Ficou todo satisfeito, o valor elevado da primeira vez coincidiu com a lembrança da pancada do peixe grande no rio. Deve ter sido verdade, pensei eu, só assim se explica a variação acentuada. A partir daqui passámos a falar sobre formas pouco habituais de pescar. Como tinha andado no mesmo quartel que ele, eu como oficial miliciano médico e ele como sargento de carreira, mas quinze anos mais velho, perguntei-lhe se recordava do capelão P. – Claro que me recordo. Então, expliquei-lhe que, num sábado de tarde, estava eu de serviço num maldito fim-de-semana, vejo-o a entrar na base com o seu carro amarelo. – Oh doutor venha cá. Quer ver a pescaria da tarde? Eu aproximei-me e, nesse momento, levanta a porta da bagageira. Fiquei com os olhos arregalados. Estava cheia de peixes. – Como conseguiu esta proeza? – Simples, muito simples! Uma granadazita e já está. – Olhei para ele estupefacto, até porque era quem era, mas antecipou-se a qualquer crítica, dizendo: - Tenho de alimentar esta tarde o pessoal amigo. Uma forma moderna de multiplicação dos peixes. Dito isto, afastou-se em toda a sua glória. O A. ria-se, porque sabia que era prática comum. Subitamente, começou a tocar o sino a finados. Desconhecíamos ambos o eleito, mas mesmo assim fui obrigado a dizer: - Não aprecio muitos os velórios, mas têm uma vantagem. – Qual, senhor doutor? – Ouvir boas histórias. Está a ver, as pessoas vão até lá, falam um pouco, depois de dizerem que o defunto era uma excelente pessoa e que deixa muita saudades – aliás nunca ouvi nada em sentido contrário -, e como não se veem há muito, aproveitam o tempo para recordações. Num desses velórios, e por causa da pesca, cá fora, no adro da igreja, sob um sol sem calor, falava-se de pescarias e pescadores. Era cada um que só visto. O melhor, para mim, foi a história de C., um primo do meu pai, pedreiro de profissão, que, ao fim da tarde, quando regressava a casa, e passava o rio a vau, apanhava os peixes debaixo das pedras à mão. Um especialista na arte. Mas o melhor é que o pedreiro dava, previamente, uma valente marretada na pedra com o seu instrumento de trabalho, atordoando-os. Dizem que sim, que era verdade. – Essa é boa! Nunca tinha ouvido. Disse o A. – Pois olhe que eu ouvi, mas se foi ou não verdade, não sei dizer. – A rapaziada daquele tempo era endiabrada. O meu pai contou-me que uma tia, em nova, no princípio do século passado, ia lavar a roupa ao rio, e, ao fim da tarde, antes de regressar, misturava pão com cocaína, que se comprava nas farmácias daquele tempo para tratar as dores. Parece que os peixes ficavam tolinhos de todo e ela apanhava-os à mão e metia-os no alguidar, debaixo da roupa. Naquele tempo era proibido apanhar peixes, mas não era proibido comprar cocaína! E assim se passou um bom pedaço da consulta, ficando a promessa de que um dia destes iria até à sua aldeia, para ouvir e contar algumas histórias. - Mas não se esqueça de que temos de alimentar e dar de beber ao corpo. Dizia-me o A. – Está bem, assim que os dias ficarem mais compridos e mais quentinhos lá irei.
O que é certo é que ambos andam muito controladinhos das suas maleitas. Quase que me atreveria a dizer que os melhores doentes, os que aderem bem às terapêuticas são excelentes comunicadores e gostam de histórias e, também, de participarem nas mesmas. Uma boa terapia para os doentes e para mim, naturalmente.
2 comentários:
Uma encantadora crónica sobre pirolitos, recordações felizes de infância, passeios relaxantes pelas feiras de velharias e paisagens bucólicas e relacionamentos calorosos entre médico e paciente, uma coisa que está em vias de extinção. Como já o disse: é o seu karma, caro Prof. – desta vez atribuo ao termo o seu verdadeiro género! – fazer o bem, “ouvindo” aqueles que necessitam de ser ouvidos! Nem toda a gente sabe ouvir! : )
Senhor Professor, é sempre uma delícia ler os seus escritos, não só pela curiosidade das histórias que nos conta, mas também pela "humanidade" que delas ressalta. Eu extasio-me.
A propósito dos pirolitos, veio-me à memória uma recordação da minha infância, vivida em Portel (Évora) em que também os pirolitos eram protagonistas. Nas traseiras da minha casa, mesmo frente à porta do quintal, existia uma fabriqueta de produção e enchimento de pirolitos. A dita fabriqueta estava entregue a dois empregados, uma mulher no enchimento e um homem no gaseamento , selagem e posterior distribuição o que quer dizer que a maior parte do tempo ficava só entregue à empregada .Era propriedade do avô (que tinha a responsabilidade da preparação do pirolito) de um meu grande amigo e vizinho, o que significava que era terreno que dominávamos perfeitamente. Como a ASAE, à altura, (60 anos)não era muito activa por aquelas bandas, substituíamo-nos muitas fezes à empregada do enchimento (manual) das garrafas e, assim, saboreávamos, incontroladamente, os pirolitos antes de gaseados e fechados. Claro que aquilo era uma gulodice inocente pois não passava de água com açucar e mais qualquer coisa misturada, cujo bebericar adorávamos. Levados por aquela ilusão, quem ganhava com isso era o proprietário pois enchíamos grades e grades, (ai o trabalho infantil) enquanto a empregada era disponibilizada para outras tarefas e, não raro, aproveitava para uma saída de assistência à casa dela, que era perto.
Com a garantia da distancia temporal, posso dizer que não me recordo de alguma vez termos feito qualquer "porcaria" no enchimento. Éramos muito certinhos. Não fazíamos "porcarias" mas as garrafas partiam-se com muita frequência. Os berlindes eram uma tentação mas, como o senhor Professor, também os achava muito leves. Bons, bons, eram mesmo para a fisga.
Que me desculpe meu caro professor, mas soube-me bem este pedacinho.
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