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domingo, 8 de maio de 2011

Maniqueísmo científico

No sábado leio uma notícia, mais uma, a testemunhar que o café faz bem à saúde, previne o cancro do fígado, afirmação feita por um reconhecido hepatologista nacional. No dia seguinte leio que “beber café, assoar-se ou a intensa ação física durante o sexo são fatores que propiciam mortes súbitas, segundo médicos britânicos”. Na sexta-feira tinha comentado, enquanto presidente de uma mesa-redonda, que é preciso acabar com a ideia de que os produtos alimentares devam ser considerados como medicamentos. O café passou a ser medicamento, o chá também, o mesmo acontece com o vinho, com o azeite, com as beldroegas, com o chocolate, com a hortelã-pimenta, com as nozes, com as bagas silvestres, com os peixes gordos, e com um sem número de outros produtos. O melhor é passar a vendê-los nas farmácias ou, então, criar um setor nutracêutico nas grandes superfícies. Um perfeito disparate, mas como dá dinheiro toca a conferir-lhes esse estatuto.
Uma dualidade incrível, já que o mesmo produto tanto pode fazer bem como fazer mal. É natural que assim seja, a virtude e o defeito são ambos faces da mesma moeda, e como não sabem utilizá-la entretêm-se a lançar ao ar e depois veem o que é dá: bom ou mau. Não há alimentos, ou produtos alimentares, bons ou maus, o seu uso, ou abuso é que pode ser positivo ou negativo. As virtudes ou os defeitos não estão nos produtos, estão nas cabeças de quem aceita ou acredita nas balelas que lhe são vendidas. Vejam lá esta do café, ontem fazia bem, hoje já pode fazer mal. Que parvoíce. O que interessa é que seja bom e que não abusemos em função das nossas características e idade. Nada mais. Quanto ao assoar-se ser considerado um fator de risco deixa-me intrigado. Como é possível? Então temos de andar ranhosos deixando que as tochas caiem sobre os lábios, para não aumentarmos o risco de derrames cerebrais? Credo! Esta gente não deve andar bem da cabeça. Se esta mensagem passar ainda pode dar cabo da indústria dos lenços de papel. Ranhosos? Conheço alguns portugueses que são uns ranhosos, mas não deve ser para evitarem correr riscos cardiovasculares. Quanto à intensa atividade física intensa durante o sexo, preciso de mais elementos para saber o que é que os autores querem dizer com “intensa”, uma afirmação que vai contra outros estudos que dizem precisamente o contrário. Enfim, o melhor é não dar muito crédito a certas notícias, nem tão pouco enveredar pelo maniqueísmo científico, que, a par do maniqueísmo político e religioso, são fatores perturbadores da nossa condição, desgraçados deuses falhados que se entretêm a atribuir classificações de bom e de mau, a seu bel-prazer, e de acordo com os seus humores, aspirando chegar, um dia, a ser humanos completos, se é que isso existe ou sirva para qualquer coisa...

7 comentários:

Tonibler disse...

Beber café e assoar-se durante sexo intenso só pode fazer mal. Acho eu...

Bartolomeu disse...

Pois... isto, ao fim e ao cabo, ranhosos, ha-os em todo o lado e em excesso. Os piores, nem são aqueles que não assoam a tocha, mas, os que pretendem vender aos outros o proprio monco, rotulado de propriedades medicinais.
Essa da actividade sexual, soa-me mais a história que envolve uvas e raposa e, lembra-me aquele episódio na Assembleia, quande se discutia a despenalização do aborto e o deputado do CDS, João Morgado, afirmou que "aquilo" tinha como única finalidade, ter filhos, o que originou a resposta em verso da deputada Natália Coarreia:

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;

e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -

Uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”

E ha por aí tanta gente que merecia ser capado...

Bartolomeu disse...

Café não tive conhecimento, caro Tonibler, mas olhe que ha muito boa gente capaz de comer intensamente tremoços e assistir à TV... durante.

Eduardo Freitas disse...

A leitura deste artigo levou-me a uma breve reflexão sobre a enxurrada de estudos(?), com que somos submergidos no dia a dia.

maria disse...

Tonibler tem razão, é capaz de ser carga a mais...

Massano Cardoso disse...

Tonibler

Assoar-se até pode ser conveniente...

Bartolomeu

Comer tremoços?!!!!! Original, sem dúvida.

Eduardo

Excelente análise.

Maria

Permita-me que lhe diga: "desconfie" do Tonibler...

luis rosario disse...

Confesso que já estava com saudades de seguir as crónicas do Profº Massano Cardoso, mas por motivos vários, andei ausente.
E nada melhor que retomar estas maravilhosas crónicas com "comida á mesa".
A primeira lei dos dietistas parece ser esta: se sabe bem, faz-te mal, mas a base de uma cultura gastronómica é sempre a pobreza, bem dizem os ingleses que a necessidade é mãe da invenção. Ou alguma vez o nosso receituário de bacalhau seria tão rico como é se o bacalhau, durante os séculos em que estimulou a criatividade caseira, estivesse ao preço que está hoje? Quem inventaria as iscas se pudesse comer sempre bifes do lombo? Ciência á parte, depois disto tudo, sabe tão bem um belo café da Colômbia e para terminar, um bom serão na companhia da pessoa que se ama.