Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Uma magistratura de recados

A análise do conteúdo do último discurso “republicano” de Sampaio motivou eloquentes editoriais da imprensa escrita de hoje. Para além, dos temas quentes que a intervenção presidencial directa ou indirectamente abordou, o que salta para as páginas dos jornais são os “recados” e as leituras das “entrelinhas”. Esta é uma das principais características da intervenção pública de Jorge Sampaio ao longo dos seus dois mandatos: sempre com um discurso muito redondo onde todos se possam rever, a única forma de chegar à substância é através das “entrelinhas” e dos recados que envia aos diferentes protagonistas da vida política portuguesa.

Se recordarmos os muitos discursos do 25 Abril, do 5 de Outubro, do 10 de Junho, das cerimónias de reabertura do ano judicial, a grande expectativa que esses discursos de Sampaio geram é sempre em torno dos recados que pretende enviar, raramente da expressão rigorosa e transparente do seu pensamento. Eu sei que o defeito poderá estar em quem lê e ouve e não em que diz, mas até nesse aspecto a conduta de Sampaio sempre tem sido a de alimentar essa magistratura de recados.

Eu espero que o próximo Presidente da República não adopte o mesmo estilo, sob risco de reunir um consenso muito alargado, mas a sua acção se revelar ineficaz. O consensualismo político é o pior dos males para um país que se debate há muito com uma crise estrutural não só da sua economia, mas do próprio Estado e do sistema político que o sustenta.

Curiosamente naquilo que não são recados, o risco da asneira é enorme. Falo precisamente na proposta de “inversão do ónus da prova” para casos de enriquecimento não explicado: “Quem enriquece sem se ver donde lhe vem tanta riqueza terá de passar a explicar à república «como» e «quando», isto é, a ter de fazer prova da proveniência lícita dos seus bens”. Isto é no mínimo preocupante para uma sociedade que se afirma de cidadãos livres e promotora da iniciativa individual.

Mas mais preocupante ainda é o pretexto utilizado, ou seja, o combate à corrupção e a falta de meios para apuramento da prova. O que Sampaio está a reconhecer é a ineficiência do sistema judicial e em vez de apresentar propostas para superar esse tipo de problemas, dispara sobre o cidadão que cometa o pecado de enriquecer sem que a “república” dê por isso.

Eu espero que este recado tenha o mesmo destino que muitos outros recados de Sampaio tiveram: ouvidos moucos ou o já tradicional esquecimento nacional.
[actualização]
Como houve muita a gente a ler como eu li o discurso presidencial de 5 de Outubro último, a Presidência publica hoje uma nota de imprensa tentanto esclarecer o "verdadeiro" significado do discurso. Ainda fiquei menos esclarecido quanto à pretensão do Sr. Presidente e mais esclarecido quanto à utilidade de tal proposta: para esquecer!

5 comentários:

Pinho Cardão disse...

Isto de enriquecer honestamente não está nada fácil e tem muito que se lhe diga!...
Proponho, em alternativa ao que o Sr. Presidente disse, que na rotunda mais importante do melhor parque de cada capital de distrito se faça um recanto, o Rich Park Corner, em que os suspeitos passem, voluntariamente, a declarar á República como obtiveram a sua riqueza...
Obviamente que os suspeitos teriam direito a fazer greve, tantas vezes como os juízes!...
Ao fim e ao cabo, a eficácia seria a mesma!...

crack disse...

Caro Pinho Cardão, permita-me que lhe tire o chapéu, pela eficácia do comentário, servido pela mais fina ironia.
A excelente nota de David Justino não poderia ter tido melhor remate.

Tonibler disse...

Penso que Jorge Sampaio foi 'o Presidente'. Na forma como está montado o sistema, o recado é a forma de funcionamento corrente do Presidente da República. Não podemos esquecer que não cabe ao presidente dizer aquilo que cabe ao povo 'dizer'. Nem pode o presidente deixar que façam orelhas moucas àquilo que o povo 'disse'. Por isso, é natural que saia 'redondo'.
Na maior parte dos casos, os recados tinham razão de ser e nos actos, ninguém pode apontar nada ao PR, mesmo quando tudo dependia exclusivamente do seu juízo.
No entanto, por vezes, Jorge Sampaio contrariou o seu modo de actuação confundindo aquilo que o povo 'disse'(no voto) com aquilo que o povo diz (vox pop). E saiu asneira. Foi o caso, como foi o da vida além do deficit e do risco dos bancos. Excelentes oportunidades para estar calado para não estragar dez anos que podem servir de manual de procedimentos de um PR.

David Justino disse...

Para poupar um pouco de trabalho aos nossos comentadores, digam lá como se interpretam os dois parágrafos seguintes:
"Impõe-se, por isso, a revisão criteriosa das leis anti-corrupção, que estabeleçam com maior precisão e rigor os casos a que se aplicam e tornem mais severa a punição dos infractores. Depois, não me cansarei de o repetir, é preciso reforçar os meios de investigação, pois sem investigação não há provas e sem provas não há punição. Mas não chega. A defesa da República exige mais. Quem enriquece sem se ver donde lhe vem tanta riqueza, terá de passar a explicar à República “como” e “quando”, isto é, a ter de fazer prova da proveniência lícita dos seus bens.

Esta inversão do ónus de prova, que em nada colide com o direito de defesa, e muito menos o esvazia, é o encargo que os cidadãos inexplicavelmente enriquecidos terão de suportar para que a Justiça e a moralidade sejam repostas e a República não continue a ser escarnecida pela impunidade que a natureza dos crimes de corrupção e a exiguidade de meios têm propiciado."


Agora confrontem com o conteúdo da nota de imprensa da PR e digam lá se não se sentem uns analfabetos funcionais.

Tonibler disse...

Por acaso acho que a nota de imprensa insiste na asneira. É asneira, mas é coerente.