Creio que as histórias tristes sobre padecimentos concretos muitas vezes são um melhor caminho para modificar o comportamento das pessoas que citar regras universais (Richard Rorty).
Certos olhares perturbam-me, dão-me a sensação de que estão a pairar num estranho horizonte, invisível, longínquo, ao mesmo tempo que anseiam mergulhar nos meus. Sinto que querem transmitir algo a que não é alheia uma entoação suave, doce, humilde e recatada. Quando presencio estes casos estou seguro de estar perante uma alma em sofrimento.
Uma tarde de trabalho como tantas outras. Antes de iniciar, um pequeno passeio levou-me ao jovem rio acabado de sair do ventre da serra próxima, titubeante, puro e límpido, e que amorosamente acariciava os longos fios da frondosa cabeleira verde da mãe natureza. Fiquei durante uns bons momentos, no cimo da velha e estreita ponte, a vê-lo a correr esperançoso e vaidoso por vales e lameiros. Pensei: - Mal sabes o que te espera ao longo do teu percurso até te confundires com as águas de outros rios. Quando fores mais velho diluir-te-ás sem saber onde, e perderás a tua identidade. A memória das tuas origens começará a esvanecer-se nesse preciso instante e, por fim, quando alcançares o vasto oceano, onde tudo se confunde e se funde, já não te recordarás onde nasceste nem dos alegres momentos da tua jovem vida ao sair do algar, em que tudo parecia simples, suave e promissor, quando te inundavam de belos instantes e de muitas confidências. Uma alegria que vai transformar-se em sofrimento e na morte.
Os rios são como os homens, nascem com satisfação, crescem com esperança, vivem com sofrimento e morrem cheios de dor.
O senhor começa a responder às minhas perguntas com um olhar e uma entoação que não me são estranhos de todo, acabando por responder à que não cheguei a formular: - Há três anos morreu-me uma filha de acidente de viação. Tinha 23 anos. Olhei-o e deixei-o discorrer o tempo que quis. Enquanto o senhor perorava eu ia construindo toda a cena com os pormenores que me iam entrando, quais agulhas incandescentes, nos meus ouvidos. Local, posição, imagem feminina, estupefação que a deverá tê-la atingido antes do golpe mortal, tudo se processava como um filme. Ao mesmo tempo sobrepunham-se outros relatos semelhantes, alguns ditos nas semanas anteriores, e ocorridos na mesma povoação como se fosse uma maldição que atingia os jovens daquela zona. Outros, muitos outros, armazenados na minha memória libertavam-se como diabos à solta atormentando-me e recordando a crucificação estúpida, e não redentora, dos pais e mães que vivem tão horríveis tragédias, ano após ano, sem encontrar uma explicação, um significado, nada, a não ser uma escorrência dolorosa das almas. Escorrência idêntica a todos, que emerge através do olhar e se materializa em formas de expressão suave, doce, humilde e recatada.
Os meus pensamentos já não correspondem à beleza e à esperança dos jovens rios. Já correram muitas léguas e contornaram muitos meandros, mesclando-se com pensamentos de outros, sobretudo pais e mães, incompreensivelmente vítimas da forma mais brutal de violência.
Ao final da tarde, depois da turbulência existencial, fui impelido a ver novamente o jovem rio. Verifiquei que continuava a correr solitário, titubeante, puro, límpido, silencioso, acariciando a mãe natureza. A minha imagem e as minhas confidências devem tê-lo incomodado. Senti que desta vez fugia, agora menos esperançoso e muito menos vaidoso.
Os rios são como os homens e os homens como os rios.
Certos olhares perturbam-me, dão-me a sensação de que estão a pairar num estranho horizonte, invisível, longínquo, ao mesmo tempo que anseiam mergulhar nos meus. Sinto que querem transmitir algo a que não é alheia uma entoação suave, doce, humilde e recatada. Quando presencio estes casos estou seguro de estar perante uma alma em sofrimento.
Uma tarde de trabalho como tantas outras. Antes de iniciar, um pequeno passeio levou-me ao jovem rio acabado de sair do ventre da serra próxima, titubeante, puro e límpido, e que amorosamente acariciava os longos fios da frondosa cabeleira verde da mãe natureza. Fiquei durante uns bons momentos, no cimo da velha e estreita ponte, a vê-lo a correr esperançoso e vaidoso por vales e lameiros. Pensei: - Mal sabes o que te espera ao longo do teu percurso até te confundires com as águas de outros rios. Quando fores mais velho diluir-te-ás sem saber onde, e perderás a tua identidade. A memória das tuas origens começará a esvanecer-se nesse preciso instante e, por fim, quando alcançares o vasto oceano, onde tudo se confunde e se funde, já não te recordarás onde nasceste nem dos alegres momentos da tua jovem vida ao sair do algar, em que tudo parecia simples, suave e promissor, quando te inundavam de belos instantes e de muitas confidências. Uma alegria que vai transformar-se em sofrimento e na morte.
Os rios são como os homens, nascem com satisfação, crescem com esperança, vivem com sofrimento e morrem cheios de dor.
O senhor começa a responder às minhas perguntas com um olhar e uma entoação que não me são estranhos de todo, acabando por responder à que não cheguei a formular: - Há três anos morreu-me uma filha de acidente de viação. Tinha 23 anos. Olhei-o e deixei-o discorrer o tempo que quis. Enquanto o senhor perorava eu ia construindo toda a cena com os pormenores que me iam entrando, quais agulhas incandescentes, nos meus ouvidos. Local, posição, imagem feminina, estupefação que a deverá tê-la atingido antes do golpe mortal, tudo se processava como um filme. Ao mesmo tempo sobrepunham-se outros relatos semelhantes, alguns ditos nas semanas anteriores, e ocorridos na mesma povoação como se fosse uma maldição que atingia os jovens daquela zona. Outros, muitos outros, armazenados na minha memória libertavam-se como diabos à solta atormentando-me e recordando a crucificação estúpida, e não redentora, dos pais e mães que vivem tão horríveis tragédias, ano após ano, sem encontrar uma explicação, um significado, nada, a não ser uma escorrência dolorosa das almas. Escorrência idêntica a todos, que emerge através do olhar e se materializa em formas de expressão suave, doce, humilde e recatada.
Os meus pensamentos já não correspondem à beleza e à esperança dos jovens rios. Já correram muitas léguas e contornaram muitos meandros, mesclando-se com pensamentos de outros, sobretudo pais e mães, incompreensivelmente vítimas da forma mais brutal de violência.
Ao final da tarde, depois da turbulência existencial, fui impelido a ver novamente o jovem rio. Verifiquei que continuava a correr solitário, titubeante, puro, límpido, silencioso, acariciando a mãe natureza. A minha imagem e as minhas confidências devem tê-lo incomodado. Senti que desta vez fugia, agora menos esperançoso e muito menos vaidoso.
Os rios são como os homens e os homens como os rios.
4 comentários:
Que bom que este Homem- rio ainda tenha o dom de ouvir um outro que vive a fase do sofrimento!
Os rios não ouvem, não sentem, submetem-se ou impõem-se, não choram, não riem, apenas correm o seu curso pelo caminho que mais depressa os leve ao mar. Talvez haja muitos homens como os rios, ou que se tornam assim, mas esses não contam histórias como esta, os que sabem ver e ouvir, e sofrem com o que ouvem e vêm, não são rios, são portos de abrigo.
O rio Sado, é um dos muito poucos rios que subverteu a regra universal de "correr" no sentido de Norte, para Sul.
Hà rios assim, que vencem as regras, que lutam, que enfrentam, não deixando de ser rios, nem deixando de cumprir o diestino de um rio: percorrer um espaço entre a nascente e a foz, desaguando noutro rio e por fim, numa lagoa, ou num oceano.
Tal como os Homens.
A capacidade de uma alma entender outra alma e, conjugar esse entendimento com as leis que teimam em regê-las, é tambem uma subversão que só assiste àqueles que olham o mundo e o entendem.
É talvez essa qualidade que eterniza alguns seres... e alguns rios!
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