Viseu. Meio-dia com um sol radioso e vento fresco. Ruas semidesérticas. Procuro um restaurante para almoçar. Esbarro com o “Hilário” na rua com o mesmo nome, onde nasceu um dos mais famosos boémios de Coimbra.
Ouvi pela primeira vez o seu nome quando o Arvelos cantava ao fim da tarde, bêbado que nem um cacho, o fado Hilário, junto ao pontão dos caminhos-de-ferro, com uma voz triste, mas bem timbrada, que o álcool não conseguia roubar. Tinha dias. Quando dava para a tristeza, em oposição a momentos mais alegres, em que entoava músicas e versos muito “marotos”, era certo e sabido que tinha de ser aquele fado.
A minha capa velhinha
É da cor da noite escura
Ela quer acompanhar-me
Quando for p’rá sepultura
Conheço aquela rua há muito tempo, mas só hoje é que parei e escolhi uma casa de pasto, embora se autointitulasse restaurante. Simples, desde o espaço às pessoas, comida incluída, mas saborosa. Nas paredes, quadros, relíquias e um resto de capa de estudante rasgada presa à parede com um fita de grelo amarela, a homenagear o boémio que morreu precocemente.
Ela há-de ir contar aos vermes
Ai, já que eu não posso falar
Segredos luarizados
Ai, da minh’ alma a soluçar
Uma certa nostalgia emergia naquele espaço a que não era estranho a violenta luz do sol arrefecida por um vento caprichoso e pelas poucas almas que passeavam nas redondezas. Uma estranha sensação que já vivi em alguns funerais.
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra
A forma de um coração
Ai, a forma de uma guitarra.
Rua de almas. Antes de almoçar cruzei com uma. Conheço-a desde os meus tempos de criança. Nasceu e criou-se na minha terra. Olhou-me e não me reconheceu, nem desta vez nem nas anteriores. Ocupa invariavelmente um pequeno espaço num cruzamento de velhas artérias. Desta vez parecia uma sentinela, rígido, sob a ombreira de uma porta, recatado, com barba por fazer mas cuidada. Olhos tristes à procura de alguém ou à espera de qualquer coisa. Imóvel, sem expressão facial, sem a alegria e a vivacidade de outrora em que, na sua terra natal, vendia felicidade e exuberância, cativando os amigos e os mais putos. Um dia foi trabalhar para Viseu e deixou de ir à terra natal que dista apenas umas seis léguas. Nunca soube porquê! Impressionou-me a sua atitude. Nunca me lembro de que posso encontrá-lo, mas quase sempre que vou à minha cidade preferida, esbarro na sua figura. Parece uma flor solitária a murchar lentamente com a passagem dos anos, à espera de algo naquele belo cruzamento. À espera de quê? Não sei, mas sinto que aguarda alguém que nunca mais aparece até um dia ele próprio desaparecer. Talvez seja isso. Está à espera de desaparecer, como outros que vi ao longo do tempo deambular naquelas vias ansiosos por encontrarem uma saída. Eram sofredores da minha terra e só a morte foi capaz de os acalmar. Se houvesse purgatório, aquele espaço poderia reivindicar aquele estatuto.
Quando dou por mim verifico que já tinha calcorreado mais do que uma vez as estreitas ruas. Um ritual que se repete sempre que passo por aquelas bandas. Ao olhar para a casa onde nasceu o Hilário, recordo que o cantador da minha terra, a quem ouvi pela primeira vez o seu fado, também andou por ali ondulando ao sabor do acaso e à indiferença dos homens como uma velha e rasgada capa de estudante...
A minha capa ondulante
Foi feita de negro tecido
Não é capa de estudante
Mas é mortalha de vencido
Ouvi pela primeira vez o seu nome quando o Arvelos cantava ao fim da tarde, bêbado que nem um cacho, o fado Hilário, junto ao pontão dos caminhos-de-ferro, com uma voz triste, mas bem timbrada, que o álcool não conseguia roubar. Tinha dias. Quando dava para a tristeza, em oposição a momentos mais alegres, em que entoava músicas e versos muito “marotos”, era certo e sabido que tinha de ser aquele fado.
A minha capa velhinha
É da cor da noite escura
Ela quer acompanhar-me
Quando for p’rá sepultura
Conheço aquela rua há muito tempo, mas só hoje é que parei e escolhi uma casa de pasto, embora se autointitulasse restaurante. Simples, desde o espaço às pessoas, comida incluída, mas saborosa. Nas paredes, quadros, relíquias e um resto de capa de estudante rasgada presa à parede com um fita de grelo amarela, a homenagear o boémio que morreu precocemente.
Ela há-de ir contar aos vermes
Ai, já que eu não posso falar
Segredos luarizados
Ai, da minh’ alma a soluçar
Uma certa nostalgia emergia naquele espaço a que não era estranho a violenta luz do sol arrefecida por um vento caprichoso e pelas poucas almas que passeavam nas redondezas. Uma estranha sensação que já vivi em alguns funerais.
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra
A forma de um coração
Ai, a forma de uma guitarra.
Rua de almas. Antes de almoçar cruzei com uma. Conheço-a desde os meus tempos de criança. Nasceu e criou-se na minha terra. Olhou-me e não me reconheceu, nem desta vez nem nas anteriores. Ocupa invariavelmente um pequeno espaço num cruzamento de velhas artérias. Desta vez parecia uma sentinela, rígido, sob a ombreira de uma porta, recatado, com barba por fazer mas cuidada. Olhos tristes à procura de alguém ou à espera de qualquer coisa. Imóvel, sem expressão facial, sem a alegria e a vivacidade de outrora em que, na sua terra natal, vendia felicidade e exuberância, cativando os amigos e os mais putos. Um dia foi trabalhar para Viseu e deixou de ir à terra natal que dista apenas umas seis léguas. Nunca soube porquê! Impressionou-me a sua atitude. Nunca me lembro de que posso encontrá-lo, mas quase sempre que vou à minha cidade preferida, esbarro na sua figura. Parece uma flor solitária a murchar lentamente com a passagem dos anos, à espera de algo naquele belo cruzamento. À espera de quê? Não sei, mas sinto que aguarda alguém que nunca mais aparece até um dia ele próprio desaparecer. Talvez seja isso. Está à espera de desaparecer, como outros que vi ao longo do tempo deambular naquelas vias ansiosos por encontrarem uma saída. Eram sofredores da minha terra e só a morte foi capaz de os acalmar. Se houvesse purgatório, aquele espaço poderia reivindicar aquele estatuto.
Quando dou por mim verifico que já tinha calcorreado mais do que uma vez as estreitas ruas. Um ritual que se repete sempre que passo por aquelas bandas. Ao olhar para a casa onde nasceu o Hilário, recordo que o cantador da minha terra, a quem ouvi pela primeira vez o seu fado, também andou por ali ondulando ao sabor do acaso e à indiferença dos homens como uma velha e rasgada capa de estudante...
A minha capa ondulante
Foi feita de negro tecido
Não é capa de estudante
Mas é mortalha de vencido
7 comentários:
Não sei se este texto me ajudou ou não. Nem o seu intuito seria ajudar ou desajudar alguém. Apenas me embrenhei nele e “senti” não sei explicar o quê. Melancolia, saudade, a procura de algo que me faça esquecer o que não pode ser esquecido. É que hoje perdi uma das minhas melhores amigas. É a primeira vez que perco uma grande amiga. E há pouco ia tendo um acidente. E foi a primeira vez que me encontrei numa situação de perigo enquanto conduzia.. e já conduzo há dezenas de anos! E, de certeza, que Deus me protegeu na altura. Teve que ser. Não há outra explicação.
Caro Professor Massano Cardoso
Lindíssima (re)composição, apesar da nostalgia... A tristeza também tem de belo!
Cara Catarina
A lembrança da amizade também traz sofrimento, mas é um bem que motiva alegria.
Quando a amizade e a felicidade são grandes não é possível esquecer. Algum caminho a Cara Catarina encontrará para se reencontrar com a sua Amiga. Ambas as Amigas tiveram a sorte de se conhecer e de se terem uma à outra. Que bom!
Obrigada, Cara Margarida, pelas suas palavras de conforto. Não devemos lamentar a morte mas celebrar a vida, eu sei. Mas não deixa de ser doloroso embora a nossa dor não seja comparável àquela que o marido e a filha, tão jovem ainda, estão a sentir neste momento. Recordar a grande amizade e os bons momentos passados para aliviar o vazio que uma quase irmã deixou...
Talvez fosse bom, sermos incapazes de amar...
de Sophia de Mello Breyner Andresen:
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa
já não há «tonsura botoneum braguilhorum»
Acho que pode ter ajudado, Catarina, um texto destes ajuda-nos a trazer à superfície essa tristeza e esse sabor doce de um sentimento vivido que não é possível reviver. Coitados dos que não deixam saudades, pobres dos que não podem chorar por ninguém.
É mesmo, Suzana, uma grande amizade deixa marcas enriquecedoras que nem o tempo pode desfazer. Resta-nos recordar apenas...
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