
José Alves veio com a família para Lisboa quando o filho mais velho acabou o liceu. Quanto a isso, ele tinha ideias claras: quatro filhos, quatro doutores. E olhava de esguelha para a única filha, agarrada ao crochet, condescendendo: “-Um, pode ser genro.”
Mas no prédio em frente morava uma família abastada com duas filhas bem bonitas. A mais velha, sobretudo, com aqueles olhos enormes, um porte altivo, dava nas vistas quando saía de casa para ir às aulas de piano no Conservatório e a vizinhança comentava que ela parecia uma estrela de cinema. Na janela da frente, uns olhos jovens e ardentes seguiam-lhe os passos como quem segue o traço do destino.
José Alves ditou a sentença ao filho: “-Não costumo vê-los na missa ao domingo. Aquilo é gente herege. Tira daí a ideia.”
Na casa da frente, a Conceição, fiel guarda da sua menina, reportou os tímidos mas teimosos avanços do rapazola que lhes seguia os passos e se fazia encontrado no eléctrico. Era estudante no Técnico e estava apaixonado, isso dava bem para ver.
E a matriarca ditou a sentença à filha: “- Era só o que faltava. Aquilo são ratos de sacristia, diz que o pai até andou no seminário. A nossa família é republicana, tens muito por onde escolher, olha o teu primo António, que bonito rapaz…!”
Mas não houve volta a dar-lhe, com a Conceição a trocar as voltas à patroa e a perder o eléctrico pelo caminho, para não ter que delatar os encontros, e a menina a arranjar maneira de ir com uma amiga à missa de domingo.
Casaram 11 anos depois, ao fim de um namoro contrariado que só lhes sublinhou a paixão. As famílias nunca ultrapassaram uma reserva surda que disfarçavam com cerimónia, salvo quando José Alves, cedendo ao seu espírito trocista, invectivava o vizinho: “- Então, compadre, já deu para o peditório da nova Igreja? Bem precisados estamos, que os fiéis já ficam cá fora quando o novo padre reza a missa!” Para ouvir logo a resposta torta da comadre, cortando o impulso conciliador do marido. “-Qual igreja qual quê! Não precisamos cá de santinhos de pau carunchoso!”
E lá seguiam o seu caminho, que era dia de visita dos filhos e dos netos. Ao almoço em casa de uns, mãos bem lavadas e a tabuada na ponta da língua. Depois, atravessava-se a rua e iam ao lanche em casa dos outros, até à missa das 7.
Esta dissidência entrou para o património do novo núcleo familiar como um exercício permanente de tolerância e capacidade de ver as pessoas para além das suas crenças, respeitando cada um conforme os seus actos e não deixando que isso interferisse com o imenso afecto que todos, à sua maneira, foram mestres em suscitar e transmitir…
8 comentários:
Continua em alta o bom estilo literário e a autenticidade das histórias da Suzana.Neste caso, uma história bem real, com sobressaltos pelo meio de uma rua difícil de transpor, mas com duas casas acolhedoras logo ao lado do passeio. Da atracção dos opostos nasce a luz. No caso, a Suzana!...
Excelente, sem dúvida. Magistralmente desenhado. Belíssima ilustração do ambiente de divisão que imperou entre famílias e cerceou tantas vezes amores verdadeiros, não permitindo que se realizassem. Gostaria ainda de deixar uma nota pessoal de apreço à atitude de Conceição. Afinal, quem de nós não perdeu já o eléctrico, mais vezes que as desejadas?
Depois de uma noite e um dia desgastantes, para o corpo e para a alma, acabo de abrir esta maquineta, a que chamamos, sinteticamente, PC!
E 2 notas breves porque o cansaço é muito:
1. ao contrario de anteriores hábitos, (o mail pessoal, "a minha pagina porfissional" e outros), vou directo à 4R! Esta coisa começa a "tomar-me"! Cuida-te Vasco!
2. A Conceição é uma verdadeira diplomata! A Suzana, traz-me o Eça, o Herculano, o Camilo, e, principalmente, traz-me histórias "belas"! Que bem me fez vir directo ao 4R!
Proximo da exaustão (um dia inteiro num hospital, por razões que nunca são boas e com tudo que isso acarreta) só esta história me faria "recuperar um pouco"! Obrigado Suzana!
E um pedido: escreva!
é verdade Rui Vasco. o 4- R vicia não é?
tenho de ir aos "Quarto -Republicanos Anónimos " para me desintoxicar..ou dai talvez não.
Cara Susana toscana,isto de elogiar os seus textos de uma sensibilidade muito feminina já começa a ser repetitivo..mas o que se há-de fazer? os textos são bons!
;)
Caro RuiVasco:
São uma subida distinção essas suas palavras relativas ao 4R Muito obrigado.
Quanto à parte aborrecida da vida, oxalá tudo tenha terminado bem. Um abraço.
Caro Menino Mau:
De facto, haverá vícios piores... Mas o seu vício é para nós uma virtude!...
Caros 4republicanos, a substância viviante está nos vossos comentários, sempre a dar ânimo para abrirmos a alma e dar largas à inspiração. Sem tais leitores, qual seria o gosto pela escrita? Obrigada todos pela vossa generosidade, por mim tenciono manter o vício, não tarda o Prof. Massano começa a aconselhar o seus doentes a deitar fora os Xanax e a deitarem um olho a este bom ambiente que aqui prospera! Caro RuiVasco, espero sinceramente que os seus problemas tenham sido passageiros e que o 4r seja só MAIS UM momento agradável nos seus dias...
A partilha de experiências, vivências, reflexões e ensaios constitui uma poderosa fonte de saúde e de bem-estar.
Regozijo-me com tal facto. Afinal, à “distância” podemos dar pequenos grandes contributos que acabam por nos enriquecer.
Os seus textos, cara Suzana, são muito especiais, porque combinam uma vivência rica aliada a um estilo muito agradável e, sobretudo, emanam mensagens cujos efeitos terapêuticos são inquestionáveis.
Quando o espírito se alegra o corpo agradece….
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