(...)
Se vês moinhos, são moinhos.
Se vês gigantes, são gigantes.(...)
António Gedeão
Um amigo mandou-me um mail com fotografias antigas do aeroporto de Lisboa.
Uma das memórias mais antigas que tenho é a do aeroporto de Luanda, numa confusão enorme, e um avião gigantesco parado na pista, com uma escadaria a subir pela barriga acima. Não conseguia ver o fim das escadas, mas a minha irmã ia-me sussurando ao ouvido que lá em cima havia uma porta enorme, com a forma de boca, que nos ia engolir.
Entrámos para o monstro, a minha mãe, nós as quatro, a mais nova bebé de meses, e dentro do avião era um caos de mães e crianças, bagagens e choros. Quando espreitei pela janela, vi o meu pai, perdido na multidão, pouco maior que uma formiga a acenar com um grãozinho de areia branco na mão. Estávamos em Abril de 1961.
Em Lisboa, não nos conformávamos com os espaços acanhados, com o frio, com as casas cinzentas e os avós taciturnos, não se podia correr em casa, nem falar alto, nem andar na rua de bicicleta, nem ter cães e macacos. Víamos fotografias horas a fio, a tentar trazer de volta o meu pai e tudo que o avião tinha deixado ficar do outro lado do mundo.
Íamos então para o aeroporto de Lisboa, domingo após domingo, coladas às barras da varanda a ver chegar os aviões. Um dia o nosso pai ia sair daquela boca medonha transformada em gargalhada de alegria. Um dia a formiguinha ia voltar a ser maior que nós, fazer-nos partidas, pegar e atirar-nos ao ar para nos apanhar de volta até pedirmos tréguas.
Quando ele regressou, trazia consigo a nostalgia incurável de não termos podido voltar. Tinha filmes do desembarque das tropas em Luanda, das casas novas que se construíam, das estradas que ele tinha querido abrir e percorrer com o seu grande Pontiac. E levava-nos ao aeroporto de Lisboa, a ver chegar os aviões, “Este vem de lá, aquele vai para lá, nós qualquer dia também vamos…” até que nos habituámos àquele ritual, a inventar histórias ao despique a propósito de quem vinha e de quem partia. Já éramos crescidas, o aeroporto já estava maior, e um dia deixou de ser possível ficar ali na varanda, tão perto do cheiro e do barulho dos aviões.
Mas, nessa altura, já os gigantones de boca imunda se tinham transformado em aves fantásticas que nos podiam transportar tão longe quanto os nossos sonhos.
Gosto imenso de andar de avião.
9 comentários:
Eu, sendo açoriano, já gostei mais... quando se viaja por laser sabe bem, o problema é que para ir e vir das ilhas não há mesmo outra opção e acaba por se tornar numa monotonia...
Cara Suzana:
Ainda hei-de fazer um regresso no tempo e mostrar-lhe uma foto dessas onde os "mirones" iam ver o vai-vem dos aviões, a chegada de conhecidos e desconhecidos, o movimento que era novidade! E a imaginação que, por trás de tudo isso, levava às mais longas paragens e destinos!
Que dará um excelente livro de memórias como diz o Pinho Cardão.
Caros Pinho Cardão e RuiVasco, as memórias são um pouco (ou muito) como os sonhos, assaltam-nos com o "click" mais inesperado, e o mail com as fotografias do aeroporto era de facto fantástico, sobretudo essa da varanda com as pessoas, que também lá estava, mas que não consegui isolar para vos mostrar. Se o RuiVasco conseguir, aguardam-se outras memórias republicanas...
Caro Pinho Cardão, não acha o meu prezado Amigo que a Suzana ainda está muito longe do tempo adequado à escrita das memórias?
Pois foi. Descuido meu, Pinho Cardão. Mil perdões.
PS - Essa cautela com o "presente" é avisada, sim senhor... ;)
O Pinho Cardão não se deixa apanhar em falso :)
E Pinho Cardão também não deixaria de dizer uma verdade, mesmo que usando o presente, porque o nosso "Livro de Memórias se escreve dia a dia"...quanto mais não seja num cantinho, cá dentro!
Suzana,
Quando era miúda adorava aviões. Era um passatempo naquele tempo ir até à varanda do aeroporto ver os aviões que voavam no "céu". Era uma enorme excitação, cada vez que lá vinha um...
Andei pela primeira vez de avião em 1967, um acontecimento de que não esqueço os mais pequenos pormenores, como se fosse hoje.
Naquele momento, o sonho tornava-se realidade.
IMPRESSÃO DIGITAL
António Gedeão
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes,
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
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