Depois da Grécia, obrigada a recorrer à ajuda do FMI e do mecanismo de estabilização europeu em Abril último, eis que chegou a vez da Irlanda, que aceitou a criação de um plano de auxílio que decorre das urgen-tes necessidades de refinanciamento e recapitalização do sector bancário.
É conhecido que sou, desde há muito, um admirador confesso das opções que as autoridades irlandesas tomaram em matéria de política económica desde a segunda metade dos anos 80. Que, no espaço de pouco mais de uma década, guindaram o país para o topo do nível de vida europeu, só com o Luxemburgo acima.
Também não é novidade que, em Portugal, toda a esquerda (PS incluído) sempre viu com desconfiança o sucesso irlandês – pelo que não é surpreendente a mal disfarçada satisfação, e mesmo o sarcasmo, perante as tremendas dificuldades financeiras que desde há cerca de dois anos a chamada “ilha verde” tem vindo a viver crescentemente: “Oh, então a Irlanda não era um sucesso?!... Pois agora até está pior do que Portu-gal!...” – eis, entre outras, duas expressões que alguns, pouco informados e ávidos de mostrar que não esta-vam errados, (me) têm referido, com um sorriso nos lábios, nos últimos tempos.
Desengane-se quem pensa que mudei de opinião sobre a Irlanda. E não mudei por um motivo simples: as origens da crise irlandesa nada têm a ver com as opções de política económica das autoridades do país. O que, por outro lado, faz com que as dificuldades de curto prazo da economia irlandesa não sejam, felizmente para nós, minimamente comparáveis com o que se passa em Portugal. Explico porquê em seguida.
A crise financeira da Irlanda, que levará à intervenção do FMI e da Comissão Europeia tem a ver, única e exclusivamente, com uma gestão imprudente, irresponsável e, por isso, absolutamente condenável, dos ban-queiros e gestores do sector financeiro do país. Sobretudo devido ao desmedido avolumar de uma bolha imobiliária financiada internamente, e a uma elevada exposição ao fenómeno do subprime. Quando a crise conhecida por este nome rebentou nos EUA, originando uma forte quebra nos preços da habitação, começa-ram as dificuldades nos bancos irlandeses: os “buracos” foram sendo conhecidos pela abrupta perda de valor dos activos inscritos – quer os do outro lado do Atlântico, quer os resultantes do rebentamento da bolha imobiliária doméstica – nos balanços. E, quando a recapitalização total necessária no sector financeiro ainda está por apurar, mas se julga poder ascender a próximo de EUR 100 mil milhões (!), ou cerca de 60% do PIB irlandês, percebemos que não há Estado que resista – por mais acertadas que tivessem sido as políticas prosseguidas*. E foram: nos 12 anos entre 1996 (ano em que foi decidido que o projecto do euro se iniciaria em 1999) e 2007 (ano em que foram conhecidos os primeiros efeitos da crise), a Irlanda registou 10 (!) excedentes orçamentais, que em média representaram 1.5% do PIB por ano; a dívida pública média foi de 40% do PIB (25% em 2007); o défice externo (balança corrente) foi, em média, de 1% do PIB por ano e a dívida externa (medida pelas responsabilidades externas líquidas da economia) era pouco superior a 15% do PIB no fim de 2007. No mesmo período, o PIB cresceu a um ritmo médio anual superior a 7%; o nível de vida (PIB per capita corrigido pelas paridades do poder de compra) subiu de 106% da média da UE-27 para 144%; a produtividade cresceu, em média, quase 3% ao ano; a taxa de desemprego média foi de 5.8% da população activa (4.6% em 2007).
Já em Portugal, no mesmo período, em todos os anos existiram défices públicos e externos que, em média, representaram 3.6% e 8.8% do PIB, respectivamente; a dívida pública média anual foi de 57% do PIB (mais de 62% em 2007) e, em 2007, a dívida externa atingia mais de 90% do PIB (10% em 1996). O crescimento médio anual do PIB foi de 2.3% (abaixo da média europeia de 2.5%); o nível de vida desceu de 80.5% para 75.3% da média da UE-27; a produtividade cresceu, em média, 1.3% ao ano; a taxa de desemprego média foi de 6.1% (8.1% em 2007). Creio que os números falam por si, tornando notórias as diferenças…
Felizmente que em Portugal o sector bancário não foi gerido como na Irlanda (onde estaríamos agora se tivesse sido?...), o que faz com que a situação financeira não seja, nem de perto nem de longe, tão aflitiva como a irlandesa. Só para se ter uma ideia, a dívida pública celta deverá, em 2010, rondar 100% do PIB (recorde-se, 25% em 2007) e o défice público subirá, ainda que pontualmente, é certo, para cerca de 32% do PIB!... Tudo para evitar o colapso do sector financeiro (só o salvamento do Anglo Irish Bank será respon-sável pela deterioração do défice de 2010 em quase 20 pontos percentuais do PIB…).
Mas não tenhamos ilusões: se a curto prazo a situação portuguesa é financeiramente bem menos dramática do que a irlandesa, já a médio e longo prazo, estamos… pior. Uma vez salvos os bancos na Irlanda e coloca-das as contas públicas em ordem (num plano a 4 anos), aquele país tem todas as condições para recuperar o dinamismo que ainda recentemente o caracterizava. Já em Portugal… o problema é estrutural e prende-se com (falta de) competitividade, como os números atrás referidos bem mostram.
Essencialmente, porque o trabalho de casa – impopular, é certo, mas com repercussões positivas a médio prazo – não tem sido feito como devia pelos decisores políticos em múltiplas áreas que já muitas vezes apontei em escritos anteriores.
De forma simplista, creio não ser descabido concluir-se que na Irlanda foi a sociedade que tramou o Estado; já em Portugal, tem sido o Estado a tramar a sociedade. Uma diferença elucidativa que, felizmente, nos é favorável no imediato – mas cujas implicações a médio e longo prazo não podem deixar de nos preocupar.
* Claro que se pode sempre falar em falhas de supervisão e regulação na área financeira – mas deve recordar-se que elas não foram um exclusivo da Irlanda (muito pelo contrário) e têm mais a ver com a actuação das entidades reguladoras do sector (nomeadamente o banco central) do que propriamente com o Governo. E que dizer quando os dois bancos irlandeses (Bank of Ireland e Allied Irish Bank) submetidos aos stress tests realizados pelo Comité das Autoridades Europeias de Supervisão Bancária em conjunto com o Banco Central Europeu em Julho último cumpriram os requisitos mínimos exigidos?...
Nota: Este texto foi publicado no Jornal de Negócios em Novembro 23, 2010
8 comentários:
Subscreve-se. Para nós gestores e economistas com coluna vertebral, só há um caminho:emigrar!
«A geração mais qualificada de sempre está a deixar o país» Retrato de uma geração sem saída: um em cada 10 licenciados emigra»
Com a geração menos qualificada no poder, ignorante e " Greedy" , cometendo todos os dias erros de palmatória, Portugal continua a afundar-se.
JN: «Empresas do Estado fogem a corte salarial»
PS aprova regime de excepção para evitar fuga de quadros da Caixa Geral. Medida pode ser adoptada pela TAP, CTT, CP, Refer e ANA, entre outras
Esta medida do PS é mais uma medida criminosa que protege apenas os apaniguados do Partido, discriminatória, anti-democrática e anti-económica.
Passando por cima de todas as outras, o sector não transaccionável QUE SE CONFUNDE EM GRANDE MEDIDA COM AS EMPRESAS DO ESTADO OU COM MONOPÓLIOS NATURAIS PRIVATIZADOS, ao não diminuir os custos, e impor custos irreais a montante ao tecido que emprega, estrangulará o resto da economia nacional.
Quando tiverem 30% de desempregados não se queixem.
Idiotas!
É preciso criminalizar os idiotas que tomam estas medidas!
Miguel Frasquilho
Apenas alguns comentários ao seu post:
a) Querer ver, no "problema" da Irlanda, outra causa que uma monumental falha de supervisão é, no mínimo, um erro de paralaxe. Os bancos alavancaram-se sózinhos? da noite para o dia? por causa das radiações cósmicas? Esconderam os balanços da entidade reguladora? roubaram os depositantes, criando, por exemplo, um banco virtual?
b) O Governo irlandês, aplaudido pela comunidade financeira internacional e local, assumiu a integralidade dos créditos e dos débitos; precipitou-se e comprou um problema de enormes dimensões, sujeitando os seus concidadãos a um esforço desumano sem um prazo definido de resolução e sem certeza absoluta do grau desse mesmo esforço.
Por outras palavras, pediu um cheque em branco aos contribuintes sem, curiosamente, identificar e, eventualmente, punir os responsáveis....Olhe que, em certas circunstâncias, a diferença entre um Madoff ou uma D. Branca é um mero papel com uma autorização estadual....
c) Querer ver no "problema" nacional uma falha do estado é, no seguimento do erro de paralaxe acima, elidir a dimensão e alcançe da influência do nosso estado na sociedade. A cumplicidade pode ter graus mas, neste caso, poucos podem estar a salvo de serem abrangidos; isto de "esqueçer" que o crime também se comete por omissão é conveniente mas, não ajuda à resolução dos problemas, porque obnubila a análise do problema.
d) O modelo de desenvolvimento irlandês, a economia de mercado ou o papel da actividade do estado na sociedade não estão em causa; o que está em causa, se nada fôr feito, é a avaliação em termos éticos dos comportamentos dos agentes. Querer persistir na ilusão que esta não é importante, nem sequer relevante é abrir caminho à repetição de erros que deram origem a, pelo menos, duas guerras mundiais;
Cumprimentos
João
Mais uma vez não concordo com a sua análise.
Se olhar para a dívida das famílias e empresas reparará que esta é bem maior que a dívida do Estado, portanto não foi o Estado que tramou a sociedade, mas sim o Estado a sociedade que decidiram aniquilar-se um ao outro.
Esta situação, é aliás, recorrente entre nós. O nosso tradicional egoísmo, a nossa tremenda dificuldade em nos colocarmos no lugar do outro, a nossa imensa facilidade em exigir aos outros aquilo que nós próprios não fazemos, a nossa lusa tradição de tentar colocar em prática legislação inaplicável, a nossa lusa mania de fazer contas apenas ao investimento inicial e nunca aos custos de manutenção, o nosso ancestral "desenrascanço", a nossa tradicional desorganização, enfim... somos o que somos, pena é que ainda não tenhamos percebido aquilo que somos e devido a isso não conseguirmos deixar a idade das borbulhas e passar à idade adulta.
Já agora o que dizer das tradicionais excepções aos cortes salariais?
Já vai nas "empresas" públicas e semi-públicas e no parlamento... e estamos a 24 de Novembro...
Fartinho da Silva
E é por isso que os bons exemplos são necessários.
Para educar o povo, e não para retirar o fatiotas esperto e ambicioso e alcandorá-lo a senhor das moscas!
Estou paralaxítico!
Cumprimentos
Fernando Pobre
Caro Miguel, não creio que as pessoas se regozigem com os problemas da Irlanda, pelo menos os que não consideram que o êxito ou o fracasso dos países deva ser visto como um jogo de ganha-e-perde-contra-quem, tipo futebol.Mas hás-de concordar que não é fácil entender, durante anos fomos condenados pelo defice (e bem)e comparados com o superavit da Irlanda e da Espanha, uns bons exemplos. Mas eles afinal tinham bolhas imobiliárias e problemas no sistema financeiro (pelo menos a Irlanda) e nós, nem um nem outro. Pelo que se vê, o superavit de uns não queria dizer nada sobre a sua solidez financeira. A ausência de bolha imobiliária nossa também não, e a solidez do sistema financeiro não nos tira da fila de espera Grécia-Irlanda-Nós-Espanha.Temos defice e endividamento que bastem, mas não foi por causa do defice que os outros faliram, foi por causa de bolhas e fraquezas que nós não temos e, no entanto, parece que estamos todos no mesmo estado desesperado.Hás-de concordar que é confuso!
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