Não creio que haja, em Portugal, plena consciência da confrangedora situação financeira do Estado. Muitos têm abordado esta questão ao longo da última década, advertindo para o desgraçado rumo que ia sendo seguido. Incluo-me nesse grupo, tendo referido, em inúmeras ocasiões que a nossa “história” tinha tudo para acabar mal. Volto, neste texto, a tentar contribuir para clarificar a situação que enfren-tamos – mostrando por que o caminho a seguir vai ter que ser mesmo muito diferente (o que teria sempre que acontecer, independentemente do auxílio externo entretanto pedido).
As duas figuras aqui mostradas apresentam a evolução, ao longo dos últimos 16 anos terminados em 2010, dos valores (tomados em percentagem do PIB) das rubricas das Administrações Públicas “receitas fiscais e contributivas” e “despesas sociais e de funcionamento”. As primeiras são compostas por impostos directos e indirectos, e contribuições sociais; as segundas incluem prestações sociais (incluindo pensões de reforma, apoios sociais diversos e despesas de saúde) e despesas de funcionamento (subdivididas em massa salarial e consumos intermédios, que representam as despesas do dia-a-dia do Estado, maioritariamente em bens e serviços). Contudo, na primeira figura, aquelas receitas são mos-tradas em conjunto com as referidas despesas de forma desagregada. E que se nota no horizonte em análise? Uma tendência crescente das receitas cobradas, uma tendência ainda mais ascendente das prestações sociais e uma estabilização, em geral, das despesas de funcionamento. Porém, quando reu-nimos as despesas sociais e de funcionamento num único agregado (segunda figura), o efeito é devas-tador: em 1995, as receitas fiscais e contributivas eram superiores a estas despesas em cerca de 2 pontos percentuais (pp) do PIB (cerca de EUR 1.6 mil milhões); daí para cá, este gap foi, em geral, sendo progressivamente estreitado até que, em 2004, aquelas despesas passaram, também em geral, a ser superiores àquelas receitas. E, em 2009-2010, a diferença assumiu valores da ordem dos 5 pp do PIB, com as despesas sociais e de funcionamento a situarem-se entre EUR 8-9 mil milhões acima das receitas fiscais e contributivas. É esta, grosso modo, a diferença que existe entre a esmagadora maioria das receitas públicas (as receitas fiscais e contributivas situam-se entre 80% a 85% do total) e as despesas sociais e de funcionamento – que representam menos de 80% do total das despesas públicas. Arrepiante: os impostos e as contribuições sociais que pagamos são claramente insuficientes para fazer face às despesas correntes do Estado (em salários e em bens e serviços) e às despesas sociais! Trata-se, como é fácil de ver, de uma equação impossível… que, para se tornar possível – e tem obrigatoriamente que se tornar –, vai exigir indispensáveis e, certamente impopulares, medidas que tornem rapidamente este défice num excedente (porque, como acima referi, as “outras despesas públicas” – entre juros da dívida pública, investimento público, e outras despesas correntes e de capital – são maiores do que as potenciais “outras receitas” cobráveis – receitas de capital e outras receitas correntes).
Admitindo como indesejáveis novas subidas da carga fiscal devido a aumentos de impostos (que já danificaram em demasia a competitividade e o crescimento económico, de que Portugal precisa deses-peradamente e sem o que não resolverá nenhum dos seus problemas), é ao nível das duas categorias de despesas aqui referidas que – até pela sua dimensão – se terá que actuar.
Reformando e tornando mais eficiente um Estado tentacular e que inferniza a vida aos cidadãos; e reformulando o chamado “Estado Social” que hoje conhecemos: garantindo o apoio e a prestação de serviços, sem custos adicionais, a quem efectivamente não os pode suportar financeiramente – e não, como hoje sucede, a todos os cidadãos, independentemente do seu nível de rendimento. Com o progressivo envelhecimento da população, é esta a única forma de garantir a existência de um Estado Social que sirva os mais necessitados e desprotegidos. Quem afirmar o contrário não é sério nem está a ser verdadeiro.
Contas fáceis de fazer mostram a necessidade de uma descida das despesas de funcionamento entre EUR 2-3 mil milhões e das despesas sociais entre EUR 6-7 mil milhões para trazer estes dois agregados para níveis próximos dos comportáveis. É muito? Talvez. Vai doer? Vai. Mas é assim que vai ter que ser, porque há muitos e muitos anos que andamos a brincar com o fogo. O que fez esgotar a paciência e a tolerância dos nossos credores. Até ao ponto em que foi preciso FMI, Comissão Europeia e BCE instalarem-se no nosso País para garantir que a equação impossível vai, mesmo, tornar-se possível.
Nota: Este texto foi publicado no caderno Confidencial do jornal Sol em Abril 29, 2011.
3 comentários:
Isto está demasiado "aritmético", caro Miguel. O volume das reduções necessárias não deve ser tão grande porque a própria redução vai fazer subir o PIB porque vai desalocar o trabalho para o estado em trabalho economicamente valioso e, por isso, vai ter um efeito multiplicativo.
E não vai doer assim tanto. Pelo menos não muito mais do que já doi.
Caro Tonibler,
Acredite que as contas estão por baixo. O montante a cortar em cada uma das áreas nao será inferior ao que refiro - a não ser que se queira subir os impostos, o que me parece de todo em todo (e mais uma vez) perfeitamente desadequado...
Caro Miguel,
Se as contas foram "fáceis", como diz, não será tanto. Eu explico o meu ponto de vista começando por uma pergunta simples:
Se retirar 9 mil milhões às despesas de funcionamento/sociais, as pessoas vão comer menos 9 mil milhões? Quantos mortos de fome está a incluir nas contas?
Obviamente, ninguém vai morrer de fome. As pessoas que vão ser retiradas do fluxo de dinheiro do estado vão procurar compensar a falta desse fluxo por outro lado e vão efectuar trabalho mais valioso do ponto de vista económico. O trabalho valioso do ponto de vista económico tem um efeito multiplicativo e, por isso, o facto de deixar de gastar dinheiro vai ser suficiente para retirar mais receita fiscal, mesmo sem mexer no valor nominal dos impostos. Não será tanto.
É minha convicção que bastam alguns cortes (profundos, sim, mas... ) para quem em 2012 estejamos a crescer muito bem. Mas podemos voltar a fazer novas contas depois dos srs alemães nos darem notícias e depois "falamos"...
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