Repito o café para ver se consigo aguentar o trabalho. O dia está feio, cinzento escuro, uma aguadilha peçonhenta cai do céu e amolece a alma. Nem assim, o sono continua a incomodar-me. Começo a reler Salinger à mesa do café, ainda falta uma hora, por este andar ainda vou conseguir ler quase toda a sua obra, de uma sedução sem limites, ele não escreve, disseca almas. Deve ser um dos poucos escritores que leio a conta gotas, apenas para prolongar no tempo o seu efeito, e quando não tenho mais, ponho-me a relê-lo, coisa rara em mim. Como já tinha lido meia dúzia de páginas, pensei, o melhor é interromper, foi o que fiz. Nesse preciso momento entrou o velhote das cautelas, com o seu andar típico, a refletir velhas maleitas que a idade e o tempo asqueroso se encarregam de lembrar. Muito curvado, e a coxear com alguma dificuldade, empunhava um maço de cautelas; debaixo do braço oposto, apertava, zelosamente, uma velha carteira cheia de quaisquer coisas relacionadas com o seu negócio. Hoje andava à procura de clientes, noutros dias, na época invernosa, costuma dormitar junto à montra do café, mas quando o tempo está bom prefere sentar-se na esplanada, debaixo da palmeira, onde faz as suas sestas, cada vez mais prolongadas. Não aborrece ninguém, procura os conhecidos e, na maior parte das vezes, aguarda que o chamem. Deve ser um excelente contador de histórias pelo que já me foi dado a observar. Há uns meses comprei-lhe duas cautelas. Não sei por que é que fiz aquilo. Que me lembre comprei poucas vezes, talvez os dedos da mão direita sejam suficientes para ter uma exata ideia, exceto quando era novo. Nessa altura a minha avó mandava-me comprar todos os anos, pelo Natal, uma cautela. Não lhe conheci outra extravagância. O que é certo é que o Natal ainda vinha distante e já se punha a dizer que não podia esquecer-se de comprar a cautela da taluda. Quando sabia que já estavam à venda, mandava-me chamar, dava-me a notita e eu ia todo lampeiro aos cauteleiros da terra comprá-la. Tinha que ser, na altura esgotavam-se com facilidade. Não havia pobre que não tentasse a sorte. Umas vezes comprava ao Menino, um jovem deficiente com distrofia muscular, que andava de cadeira de rodas, outras ao Bertinho ou, então, ao engraxador meio-maluco, a lembrar um fio descarnado, quer de físico quer de comportamento poético capaz de provocar choques elétricos. No dia aprazado, quinta-feira, ao meio dia, era apregoada a sorte num cantar único. Sabia que era assim, porque ouvia através das ondas da rádio. Nunca lhe saiu nada, a não ser uma vez ou outra a terminação que guardava para trocar pela lotaria dos Reis, mas nunca a do Ano Novo. Nunca lhe perguntei qual a razão. Mas não ficava esmorecida, dizia, para o ano há mais, e, nas vésperas do Natal seguinte, voltava a retirar do bolso debaixo do avental mais uma nota e eu ia a correr comprar uma cautela antes que se esgotassem.
Olhei para o velho cauteleiro e deu-me para comprar uma cautela. O senhor estava a conversar com um casal, mesmo à minha frente, dizendo que, em tempos, por esta altura, as cautelas voavam. Nem era preciso andar de mesa em mesa. Agora não. Não há dinheiro e todos os dias há jogo, e elencou o que acontecia em cada dia da semana. Sorri. Fiz-lhe um sinal para se aproximar. Aproximou-se sem pressas e estendeu a mão que empunhava um valente maço de cautelas para que eu escolhesse. - Não. Escolha o senhor. - Então vai esta. Precisamente uma que já estava meia dobrada, e com uma agilidade impressionante recortou-a das restantes. Paguei. Foi então que eu ouvi, boa sorte, ao mesmo tempo que fazia o gesto de tirar o boné. Olhei para o número, achei-lhe piada, como se os números dissessem alguma coisa, dobrei a cautela e coloquei-a na carteira, certo de lhe irá acontecer o mesmo que as antigas cautelas da minha avó.
Mas afinal o que me levou a comprar um número? A lembrança de uma época, claro, mas também, provavelmente, algo que eu procurava, a forma do cauteleiro dizer, boa sorte, ao mesmo tempo que agradece fingindo levantar o boné. Será que haverá alguém capaz de dizer com tanta sinceridade, boa sorte, como fazem os cauteleiros? Desconfio que não, talvez, instintivamente, tenha sido essa a verdadeira razão da compra, mais do que a esperança de ser contemplado com a taluda.
Soube-me bem ouvir: - Boa sorte!
5 comentários:
Lidl em Benfica há pouco.
Uma africana ou mulher dessa origem, meia idade, vira-se para mim e pergunta:
Mas porque é que vai pagar?
Porque posso (depois de ter dito à caixa para ver se eu podia pagar).
A meia voz: Deus o abençoe.
E saiu para a rua.
Pagou um artigo que levava com ela,
quando percebeu o custo de um saco com 4 pães, recusou a compra.
Bolas 4x80gr: 0,59 euros.
Nada de extraordinário, diga-se de passagem.
Boa sorte, caro Massano Cardoso, mesmo que seja só a sorte de continuar a saber apreciar as coisas pequenas da vida, um bom livro, a observação de quem passa, o tom da voz que lhe deseja boa sorte.
Caro Bmonteiro, há dias aconteceu-me o mesmo, uma mulher na fila da caixa que não tinha dinheiro que chegasse para levar um pacote de leite e pão, só levou o pão e eu tive vergonha de me oferecer para lhe pagar o leite, acho que foi mesmo medo de a melindrar, não sei, ainda não estamos habituados a encarar a pobreza como algo que podemos mitigar, nem que seja no momento. Fiquei furiosa comigo mesma mas realmente não tive a sua coragem.
Carta de José Saramago, para a avó Josefa;
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.
Quando se lê uma carta destas, não há espaço para mais nenhuma. Uma preciosidade que agradeço. Um desejo que abraço. Obrigado pela partilha.
«O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.»
Penso muito nisto, caro Professor. Não porque Saramago o tenha escrito, mas porque o sentido desta frase, desde cedo, antes de a ter conhecido, me assaltou inúmeras vezes o espírito.
dentro de muito pouco tempo, estaremos ambos mortos. Mesmo que ambos vivamos até aos cem anos, será pouquíssimo o tempo de vida que nos resta; menos que aquele que já vivemos. E, durante o tempo que temos de vida e aquele que nos falta viver, o que dissemos, o que iremos fizer, o que fizemos, o que iremos fazer. As nossas vidas são incomparáveis na acção, mas igualmente por preencher, face a tudo o que poderia ter sido feito e a tudo o que sabemos não iremos poder fazer.
Imagino, como poderiam o nosso país e o mundo ser diferentes, melhores, mais justos, mais ricos, se dissessemos uns aos outros o essêncial no sentido de atingir a harmonia, no sentido de nos apoiarmos e valorizarmos mútuamente, no sentido de conseguirmos, tal como a avó de Saramago, sentar-nos tranquila e serenamente à soleira e apreciar a beleza do mundo, sem sentir pena de morrer.
Porque a pena que sentimos, na verdade, não é de morrer, mas sim, de não termos vivido, de não termos realizado sonhos, de não termos abraçado toda a gente, de termos alimentado ódios, de nos termos repugnado com a igualdade, ou a semelhança, por verificarmos que ao fim e ao cabo, a nossa existência resumiu-se, na maior parte do tempo a isso mesmo... a existirmos.
;)
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