É hoje notícia que 5200 famílias e promotores imobiliários tiveram que entregar as casas aos bancos só em 2011 e que, apenas no mês de Outubro, foram entregues quase 700 imóveis. Se abrirmos os jornais nas páginas dos anúncios, encontramos um mar de execuções fiscais, com o nome dos executados, o valor dos bens e o preço pelo qual vão à praça, sempre muito inferior ao da avaliação fiscal. Uma realidade que, em bem pouco tempo, se tornou tão próxima, já todos conhecemos casos destes, pessoas amigas, vizinhos ou familiares que viviam bem, confiaram no futuro, assumiram encargos que pareciam razoáveis e que, de repente, lhes desaba o mundo e ficam sem nada e ainda com dívidas por pagar, condenados ao ostracismo, dura pena, uma espécie de desterro económico num mundo que vive de economia.
Vi há tempos, no Instituto Franco-Português, uma peça de teatro dos Artistas Unidos chamada Um Homem Falido, de David Lescaut. Tratava-se, em suma, de um homem que se tinha endividado ao ponto de ser declarado falido. A peça desenrolava-se numa assoalhada, toda mobilada e onde se viam vários objectos que ele ia identificando, como se de repente tomasse consciência do valor e da falta que cada um lhe faria, assim mesmo, tal e qual estava, velho, desirmanado, ou absurdo.
Chegou então o mandatário liquidatário. Conversaram, um contando-lhe as amarguras de se ver sem dinheiro e, em breve, sem nada, para pagar as dívidas, o outro gabando-se de como era rápido e eficiente a vender tudo, fosse o que fosse, conseguia obter nem que fosse uns tostões por qualquer peça da massa falida, para abater à dívida. E começou a arrebanhar tudo, peça por peça, o espelho, os pratos, o tapete, só podia deixar o que fosse “essencial à sobrevivência e dignidade” do devedor. Perante cada objecto arrolado, o falido insistia que lhe era indispensável, o outro demonstrava-lhe que não, que podia muito bem viver sem isso, e ele cedia, curvado.
O mandatário saiu com tudo, deixando-o só, enrolado sobre si mesmo no chão da casa vazia. Ficou apenas um livro, “The Shrinking Man”, que contava a história de um homem que começou a encolher, encolhia e sentia o espaço e o tempo a estenderem-se à medida que ele diminuía até ficar minúsculo. Reviu-se imediatamente no livro, era assim que se sentia, quase a desaparecer, perdido e despojado na imensidão que crescia à sua volta.
O outro voltou depois de vender tudo e encontrou-o assim, enrolado no chão a ler, contou-lhe que vendera a patacos todas as mobílias, a colecção de discos, disputados na praça, vendeu-os um a um por uns tostões. O falido, revoltado, perguntou-lhe quem é que ganhava com aquilo tudo, ele tinha ficado sem nada e os credores com pouco, assim tudo vendido ao desbarato. O outro então explicou, muito entusiasmado, que a sua função não era pagar aos credores mas sim libertar as pessoas da prisão das dívidas, daquele tormento de trabalhar para pagar, de deixar de viver para pagar. Mais valia assim, ele tinha-o despojado de tudo, era verdade, mas isso fazia parte do jogo, era preciso mostrar que ele tinha sofrido, o que interessava aos credores não era que ele pagasse as dívidas, isso eles já sabiam que nunca iam receber, o que era preciso era ele poder voltar a ser livre. Era por isso que ele, executor, era tão rápido e eficaz, desde que tinha percebido isso cumpria a sua missão com muita alegria.
Olho o mar de execução de penhoras nos jornais, casas ricas e casas pobres, negócios falhados ou simples moradas de família, vejo as notícias que falam em milhares de casas vazias, oiço as imobiliárias a queixar-se da concorrência desleal dos bancos, que vendem as casa a preços ridículos e lembro-me do homem encolhido, perdido por completo do seu lugar no espaço e no tempo. E tudo isto me parece um imenso absurdo, uma peça surrealista, de humor ácido, em que as pessoas se somem no vazio que cresce à sua volta.
Vi há tempos, no Instituto Franco-Português, uma peça de teatro dos Artistas Unidos chamada Um Homem Falido, de David Lescaut. Tratava-se, em suma, de um homem que se tinha endividado ao ponto de ser declarado falido. A peça desenrolava-se numa assoalhada, toda mobilada e onde se viam vários objectos que ele ia identificando, como se de repente tomasse consciência do valor e da falta que cada um lhe faria, assim mesmo, tal e qual estava, velho, desirmanado, ou absurdo.
Chegou então o mandatário liquidatário. Conversaram, um contando-lhe as amarguras de se ver sem dinheiro e, em breve, sem nada, para pagar as dívidas, o outro gabando-se de como era rápido e eficiente a vender tudo, fosse o que fosse, conseguia obter nem que fosse uns tostões por qualquer peça da massa falida, para abater à dívida. E começou a arrebanhar tudo, peça por peça, o espelho, os pratos, o tapete, só podia deixar o que fosse “essencial à sobrevivência e dignidade” do devedor. Perante cada objecto arrolado, o falido insistia que lhe era indispensável, o outro demonstrava-lhe que não, que podia muito bem viver sem isso, e ele cedia, curvado.
O mandatário saiu com tudo, deixando-o só, enrolado sobre si mesmo no chão da casa vazia. Ficou apenas um livro, “The Shrinking Man”, que contava a história de um homem que começou a encolher, encolhia e sentia o espaço e o tempo a estenderem-se à medida que ele diminuía até ficar minúsculo. Reviu-se imediatamente no livro, era assim que se sentia, quase a desaparecer, perdido e despojado na imensidão que crescia à sua volta.
O outro voltou depois de vender tudo e encontrou-o assim, enrolado no chão a ler, contou-lhe que vendera a patacos todas as mobílias, a colecção de discos, disputados na praça, vendeu-os um a um por uns tostões. O falido, revoltado, perguntou-lhe quem é que ganhava com aquilo tudo, ele tinha ficado sem nada e os credores com pouco, assim tudo vendido ao desbarato. O outro então explicou, muito entusiasmado, que a sua função não era pagar aos credores mas sim libertar as pessoas da prisão das dívidas, daquele tormento de trabalhar para pagar, de deixar de viver para pagar. Mais valia assim, ele tinha-o despojado de tudo, era verdade, mas isso fazia parte do jogo, era preciso mostrar que ele tinha sofrido, o que interessava aos credores não era que ele pagasse as dívidas, isso eles já sabiam que nunca iam receber, o que era preciso era ele poder voltar a ser livre. Era por isso que ele, executor, era tão rápido e eficaz, desde que tinha percebido isso cumpria a sua missão com muita alegria.
Olho o mar de execução de penhoras nos jornais, casas ricas e casas pobres, negócios falhados ou simples moradas de família, vejo as notícias que falam em milhares de casas vazias, oiço as imobiliárias a queixar-se da concorrência desleal dos bancos, que vendem as casa a preços ridículos e lembro-me do homem encolhido, perdido por completo do seu lugar no espaço e no tempo. E tudo isto me parece um imenso absurdo, uma peça surrealista, de humor ácido, em que as pessoas se somem no vazio que cresce à sua volta.
5 comentários:
Eutanásia financeira! Afinal sempre é permitido a eutanásia...
Um dia ainda havemos de tentar vender troços de auto estradas.
E os crânios (mudei fdp) que as criaram, no bem bom de Bruxelas ou Paris.
Um deles acaba de chegar de Londres.
Suzana
Este seu texto traz à luz do dia a fragilidade dos castelos de cartas em que se alicercou a sociedade em que vivemos. Quais princípios e valores. Instalou-se uma espécie de ditadura de direitos e obrigações que com regra e esquadro se vão cumprindo, ainda que deste exercício de rigor numérico mas de moralidade mais do que duvidosa alguém saia a ganhar.
Ao ler este seu post veio-me à ideia uma cena do filme Matrix, quando Morpheus, sentado numa poltrona velha, com um antigo televisor, rodeado de um cenário de desolação, vazio, e ruína, diz a Neo:
"Welcome to the desert of the real."
Cada vez que paro a pensar sobre este e outros assuntos semelhantes, parece-me que a vida corre a uma velocidade cada vez mais frenética em direcção a um futuro muito negro.
Já só espero encontrar más notícias ao virar da esquina.
Homem encolhido numa sociedade encolhida!
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