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domingo, 29 de maio de 2011

Prazer e tempo

Sexta-feira. Saí para a minha terra um pouco mais tarde do que é habitual por causa de umas aulas programadas para o final da tarde. Uma viagem mais longa do que o esperado, não devido ao trânsito, mas a um desvio forçado e a um cansaço que atraía magneticamente as pálpebras. Não foi preciso encontrar pretextos para descansar, o corpo pedia incessantemente repouso. No silêncio da noite o chiar da rolha fez eco na sala anunciando com alegria o prazer de saborear uma delicada bebida. Foi o que eu fiz. Depositei o líquido escuro na boca como se os meus lábios fossem um conta-gotas de precisão. Com os olhos semicerrados, a respeitar o eletromagnetismo do repouso, analisei o seu efeito, sensação de doce e amargo que se prolongava no tempo misturando-se com agradável queimadura, duas ondas a cavalgarem uma sobre a outra como se tivessem frequências diferentes. Quando o efeito ameaçava desaparecer, realimentava a minha fonte de prazer com mais uma a duas gotas. Um gotejar mecânico a atear o prazer no tempo. Durante esse tempo pensei no prazer e no tempo.
Ouvi a meia hora na torre, uma meia hora qualquer que mais parecia um segundo, uma contração inesperada do tempo a querer roubar-me o prazer. Maldito tempo. Odeia os momentos de volúpia, mas diverte-se no prolongar do infortúnio.
Tempo. Não nos entendemos e nunca iremos entender. Um ódio recíproco, entremeado por algumas tréguas, de curta duração!
À tarde, as aulas maratonas de um curso para o qual se lembraram de me convidar, deviam ter começado às 5 horas, mas já me tinham avisado, e mais do que uma vez, de que não valia a pena chegar a horas. Eu sabia de experiências anteriores, mas não consigo, um quarto de hora antes já estava no posto. Uma questão estrutural, quase que diria mesmo visceral. Depois, apareceram alunos a conta-gotas, quando já tinha iniciado a aula, muito tempo após a hora marcada, para menos de meia dúzia. Agruparam-se por afinidades comportamentais, atentos e interpelativos, descuidados, indiferentes e distantes. Falei de vários problemas e acabei por abordar a dinâmica de certos fenómenos de saúde que têm vida própria e que se alimentam de nós, “ignorando” as nossas intervenções ou deixando algum espaço, curto, para uma eventual ação humana. Concluí que muitos dos nossos males são devidos a “fenómenos” que têm vida própria, às vezes uns verdadeiros monstros, que gozam com as nossas arrogantes pretensões de querer mudar tudo e todos. Exemplifiquei com os diversos tipos de comportamento que estava a observar naquele preciso momento, num laboratório de ciências, sem quaisquer condições, transformado numa sala de aulas. Um curso de pós graduação na área da educação para a saúde! Não deixei de analisar outros comportamentos relacionados com a saúde, muitos dos quais são mais do que previsíveis, não havendo nada ou muito pouco a fazer. Manifestei o meu desejo de deixar de lhes dar importância. No entanto, apraz-me registar a atenção e a dedicação de alguns alunos em perfeito contraste com outros. Quanto à falta de pontualidade, que a grande maioria deve considerar como normal, é um sinal de défice da capacidade organizativa de uma sociedade. Podemos ser brilhantes e muito criativos, mas sem organização valemos pouco ou mesmo nada. Expliquei-lhes isto tudo, porque usaram o tempo contra mim, prolongando a espera numa tortura que queria evitar. O tempo riu-se e cansou-me. Não senti prazer à tarde, mas à noite, lutando contra a agitação do tempo, ainda consegui saborear uma boa bebida no recanto de um espaço perdido, um pequeno prazer diluído numa efémera fração de tempo. Enganei-o momentaneamente ou, então, foi ele que se distraiu, para amanhã me atormentar com mais raiva. Que mais posso esperar?

1 comentário:

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Estou consigo nessa necessidade de cumprir horários. É um bom vício. É curioso que as pessoas para apanharem um avião chegam a horas ao aeroporto, mas quando se trata de cumprir horários de trabalho é um problema.
Um dos nossos problemas estruturais, que teimamos em não resolver, é justamente o défice de organização, de gestão em sentido mais lato. Uma falta grave que se verifica a todos os níveis e que nos tem prejudicado imenso. E há coisas tão simples que cada um de nós pode resolver e dar o exemplo.