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quarta-feira, 25 de maio de 2011

Liliana e Mariana

No mesmo dia, de tarde...

Tarde rotineira. Entra um senhor com trinta e alguns anos, bem-parecido, mas com a barba por fazer, olhar triste, embora fizesse esforço para mostrar simpatia. Perguntas de rotina, se andava bem de saúde, respondendo logo que não, que tomava um medicamento, porque a mulher tinha falecido há pouco tempo, há seis meses. Mais uma tragédia, pensei. Não resisti e perguntei-lhe qual tinha sido a causa. Cancro, Silenciei-me momentaneamente à espera da localização, olhando-o. Do útero senhor doutor. Que idade tinha a sua mulher? Nova, muito nova, 38 anos. Estive tentado a perguntar-lhe se tinha filhos, mas evitei questioná-lo com receio de que me dissesse que sim e tudo o que isso envolveria para si como fonte de sofrimento e de inquietação para mim. O exame decorreu com normalidade, sem sobressaltos. No final despedimo-nos, e o senhor, ao sair, hesita, pede-me desculpa, perguntando se não me importava de ver uma coisa. Fiquei um pouco perplexo, porque, em termos de saúde, tínhamos chegado a algumas conclusões, inclusive o ter aconselhado a extrair dois nevos que pelas suas características poderiam originar problemas no futuro. Será que se esqueceu de me dizer mais qualquer coisa? Não, não me parece. Foi então, que, sem lhe dizer nada, retirou a carteira do bolso e mostrou-me três fotografias, a da mulher e de duas meninas. O homem deve ter lido o meu pensamento quando quis perguntar se tinha ou não filhos. Duas lindas meninas, uma de seis e a outra de três. Agora, tenho muitos problemas, porque faço de pai e de mãe. Mas a vida tem de continuar, não é senhor doutor? Pois, pois tem, mas não deixa de ser traiçoeira. Como se chamam as meninas? Liliana e Mariana. Sorriu orgulhosamente. Felicidades para as meninas e para si.
Saiu.
Claro que fiquei perturbado. E estou perturbado. Não consigo compreender nem aceitar estas situações. Se escrevesse o que já me passou pela cabeça esta tarde... Enfim, muitas das reflexões ficam comigo, mas há uma ou outra que não vou deixar de expor. Quando dizem que a vida é um dom, que é bela, que é filha da vontade divina, arrepio-me todo. Não. Não pode ser nada disso. E fico ainda mais incomodado quando há quem queira ver coisas “extraordinárias”, como desafios superiores, como caminhos insondáveis e outras maquinações mais adequadas à ficção do que à realidade. Comungo da expressão de Jostein Gaarder, na sua última obra, O Castelo dos Pirenéus, em que, a determinada altura, na troca de e-mails com a sua antiga namorada, que não via há 30 anos, dissertava em nome da razão contra a “espiritualidade” da sua antiga amada, antiga como quem diz, afinal, no fundo ainda permaneciam vivos os velhos laços. Dizia o cientista que as partículas, os átomos, as galáxias, as estrelas e os planetas têm razão de existir, mas a vida e a consciência não passam de “anomalias cósmicas”. Aconteceram por mera causalidade. O conceito de Monod ainda permanece vivo e atual, um acaso que se transformou em necessidade, mas não deixa de ser uma anomalia, só assim se compreende muitas coisas...
Liliana e Mariana....

14 comentários:

Unknown disse...

Uma situação muito triste e dolorosa, mas nem por isso a vida deixa de ser bonita.
Nós temos um caminho a percorrer.
Interessa fazê-lo com alegria e serenidade. Vivendo a vida sempre no presente.
O futuro será sempre uma incógnita.
No final tudo terá acabado bem.
As meninas criaram-se e foram amigas do pai. Todos ganharam mais uma estrelinha que ficou no céu a guiá-los.

luis rosario disse...

Profº, para muitos é mais dificil imaginar um mundo sem criador do que um criador carregado com todas as contradições do mundo. São histórias reais como esta que aqui partilha com os leitores, que que nos fazem proclamar a incredulidade. Se Deus existe, porque raio isto existe? Se o que digo é absurdo, o sofrimento é o que há de mais absurdo neste contexto, e pergunto a Deus: Porque raio isto existe? Não é o sofrimento das crianças e deste pai que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica tal sofrimento!

Gabriela disse...

Fui operada a um cancro nos ovários, passei por sessões de quimioterapia e vivo, agora, à espera da morte. Pode imaginar o quanto a história da Liliana e Mariana me tocou. É que eu também vou deixar cá os meus. E o sofrimento que vai ser o deles, é hoje o meu mais sofrimento.

Massano Cardoso disse...

Gabriela
Não vou esquecer o seu comentário. Vou registá-lo e não só...

luis rosario disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
luis rosario disse...

Gabriela
Em geral, nove décimos da nossa felicidade baseiam-se exclusivamente na saúde. Sem ela, tudo se transforma em fonte de sofrimento. Infelizmente, assim é isto que existe! No entanto Gabriela, lembre-se que o que fica atrás de nós e o que jaz à nossa frente têm muito pouca importância, comparado com o que há dentro de nós, com o que fomos e somos para os outros. Os seus filhos, a quem voçê serviu de amparo, são hoje o seu apoio, e o amor que certamente vos une, será eterno e muito feliz, não havendo espaço para tal sofrimento.

Bartolomeu disse...

A Gabriela termina o seu comentário, com uma reflexão que exprime a totalidade do amor que sente interiormente, por aqueles que mais ama, aqueles que irá deixar e que sabe, irão sentir a sua falta acima de tudo.
Todos sabemos que a condição de mortais nos abrange sem excepção. Mas a distância, o vazio da ausência, é para todos angustiante, sobretudo quando existe um factor que determina sem erro, que essa separação estará para breve.
É frequente escutarmos em entrevistas na Tv, depoimentos de pessoas que passaram por problemas graves de saúde, que depois de ultrapassados, deram a essas pessoas, uma prespectiva da vida, diferente da que possuíam anteriormente. Adoptar uma nova prespectiva de vida, não será fácil, mas talvez seja a atitude mais coerente e equilibrada a adoptar, quer no caso de quem se encontre curado da doença, como de quem tem um prazo de vida estabelecido. No entanto, em nome desse amor imenso que a Gabriela guarda no mais íntimo de si, em nome dessa família que sente despedaçar-se-lhe o coração, quando pensa irá um dia deixar num percurso diferente do seu, é importante, é fundamental que deixe de viver a sua vida na prespectiva daquilo que poderá ir ser o futuro, o seu e o de todos que ama, e passe a prespectiva-la no presente, em cada momento, tentando retirar de cada um desses momentos o melhor para si e para quem partilha a vida consigo.
Entretanto, vá passando pelo "Quarta" e partilhando com todos estes amigos as suas conquistas e os seus momentos menos felizes.
;)

luis rosario disse...

Subscrevo Bartolomeu ;-)

Anthrax disse...

Subscrevo inteiramente o Bartolomeu. :)

Eu não sei o que é ter essa doença, mas sei muito bem o que é viver com a alguém que a tem e conheço em primeira mão profundidade das mazelas que ficam.

Caro Prof. MC, é horrível perceber-se que Descartes estava mesmo errado, não é? É tão mais confortável acreditar no dualismo.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Gabriela
O nosso Bartolomeu roubou-me, a bem dizer, o que no íntimo do meu coração tinha pensado dizer-lhe.
A vida está presa permanentemente por um fio, sem que nos lembremos que é assim. Deveríamos ter sempre presente esta dura realidade e aproveitarmos a vida para sobretudo amarmos os outros e sentirmo-nos amados, para partilharmos essa capacidade ilimitada que a vida nos concedeu de dar e receber em relação a quem ao nosso lado contribuiu para dar sentido à nossa existência, ajudando também que quem amamos sinta em relação a nós esse conforto. A qualquer momento podemos partir e quantas vezes não tivemos tempo para reflectir sobre o dom da vida.
Gabriela
Venha mais vezes e receba a nossa companhia e ajude-nos a partilhar os sentimentos que aqui nos trouxe.

Bartolomeu disse...

Not guilty... i swear!
;)
«Venha mais vezes e receba a nossa companhia e ajude-nos a partilhar os sentimentos que aqui nos trouxe.»
Esta frase com que a nossa cara Amiga Margarida termina o seu comentário, poderá ser lida de duas formas: a forma literal; ou... no sentido inverso, pelo facto de também nos encontrarmos neste espaço, com a disponibilidade e a cumplicidade para partilhar os sentimentos que transportamos.
Afinal... encontramo-nos todos a bordo de um imenso navio, perdido no meio de um oceano, envolto na escuridão da noite. Sempre que olhamos para cima, vimos as estrelas que brilham no céu, se olharmos para baixo, vimos a negrura das profundezas de um oceano que não fazemos ideia se tem fim.
Perdidos, meus estimadíssimos Amigos, é como todos nos achamos a meio desta viágem, mesmo aqueles que asseguram conhecer as estrelas e saber como orientar-se através delas. Resta-nos, no meio de toda esta escuridão, dar as mãos e ajudar-nos mutuamente a encontrar a luz de que tanto necessitamos para encontrar o Caminho.
;)

Massano Cardoso disse...

É isso mesmo Anthrax.

Gabriela disse...

Quando ontem, ao fim do dia, voltei aqui, fiquei comovida. Não há dúvida, são as emoções, os sentimentos que nos fazem únicos e irrepetíveis.

Muito obrigada a todos.

Bartolomeu disse...

O maior agradecimento que os "quartarepublicanos" podem receber de si, Gabriela, é poderem contar com a sua presença e saber que a sua força interior cresce em cada dia, contrariando os infortúnios da vida, transformando cada um deles, numa vitória pessoal.
;)