Quando, há muitos anos, li o "1984", de Geoge Orwell, ainda não havia telemóveis, nem videos, nem nada que nos fizesse recear como imediato o perigo aterrorizador que o livro nos mostrava, mas ficou-me sempre o temor de que nos pudéssemos sequer aproximar daquele sufoco de vigilância e de falta de privacidade. Ingenuidade minha, claro, ou falta de atenção.
Algum tempo depois, um colega que tinha ido ao Japão chegou com uma novidade estrondosa - os japoneses falavam ao telefone na rua!, através de pequenos telefones sem fios que traziam no bolso. Contava ele que era possível, em qualquer momento e em qualquer lugar, telefonar para uma pessoa e falar sem grandes limitações. E vaticinava que em breve isso se iria generalizar. Lembro-me de ter dito que achava isso impossível, certamente ninguém quereria andar com um telefone como se fosse "uma coleira", que lá se ia a nossa liberdade.
É claro que quando cá chegou essa maravilha comecei a achar interessante poder falar com as minhas filhas em qualquer momento e que até era muito cómodo poupar preocupações dessa forma tão simples. Hoje, como toda a gente, nem sei como é que se vivia sem isso, mas também se foi uma parte importante da liberdade de só falar quando e com quem quiser.
Depois chegou aquele programa ameaçadoramente chamado "Big Brother", com o sucesso conhecido, e não deixei de suspeitar que havia ali uma intenção mal expressa de nos ir habituando a uma coisa que, em abstracto, nos pareceria intolerável: uma máquina de filmar dentro da própria casa, espiando e gravando todos os movimentos e permitindo que terceiros se divertissem, emocionassem ou discutissem a propósito. Claro, os que lá estavam eram voluntários, claro que só via o programa quem queria.
E claro que deixou de parecer intolerável ter um sistema desses em casa. Ouvi há dias um anúncio às vantagens óbvias de se saber a cada momento o que se passa na sua casa quando os filhos ficam sozinhos, ou quando alguém está doente, ou, ou, ou...Basta comprar o sistema video-qualquer-coisa e do seu emprego controla mesmo tudo.
Também temos os computadores portáteis, não basta ter acesso em casa ou no emprego, agora pode levar para todo o lado a sua preciosa máquina, os seus inseparáveis filmes, enfim, a sua adorada rotina. Onde quer que esteja, não vai estranhar, é como se estivesse sempre no trabalho, ou em casa.
Ou seja, quanto mais liberdade de movimentos temos, para viajar, mais longe e mais depressa, quanto mais coisas podemos ver e disfrutar, mais curto é o nosso raio de acção.
Como vi escrito já não sei onde, não se estimulou os sedentários a sair, sedentarizou-se os nómadas.
2 comentários:
Uma excelente reflexão, Suzana. E uma verdade incontornável essa de que estamos cada vez mais perto de tudo, e por isso menos livres.
Como lhe é habitual, uma profunda e esclarecida reflexão.
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