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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A relevância política dos cidadãos

"A abstenção é uma resposta racional a uma percepção de auto-insignificância política"
José Maria Ruiz Soroa in "A Democracia funciona em automático?" El Pais, 13 de Novembro de 2010.
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O que resulta muitas vezes do nosso panorama político é que a chamada “esquerda” actua em bloco como se assumisse que tem uma legitimidade natural para ocupar o poder. A maturidade democrática já devia há muito ter atenuado esta lógica dos “bons” e dos “maus” transposta para a alternância política. Os “bons” são os que pertencem à “tribo da esquerda”, que reclamam para si a presunção de defensores do povo, governem bem ou mal, defendam ou não o presente e o futuro do tal povo. Os “maus” são os outros todos, incluindo os que, sendo da tribo, ousem criticá-la, dando armas ao inimigo. Ser “de esquerda”, apesar de ninguém se dar hoje ao trabalho de definir com clareza e verdade o que é que isso possa querer dizer em termos práticos para o governo do País, dá uma espécie de salvo conduto para todo o tipo de afirmações contraditórias, de comportamentos poucos democráticos ou de desgovernos insensatos. Ser “de direita”, por sua vez, resulta mais como acusação condenatória do que como imputação de uma linha ideológica que integra com plena legitimidade o campo democrático. De mil e uma maneiras, umas mais subtis e outras escancaradas, os modernos paladinos da “esquerda” invocam o rótulo sem estremecer perante contradições e resultados, e justificam e desculpabilizam a sua prática política como não fosse sequer admissível que “os outros” pudessem fazer melhor. À “esquerda” a que assistimos hoje, basta ser de esquerda para que todo o debate seja um incómodo fútil e atrevido e todas as críticas ou sugestões uma agressão de má fé. E todos os adversários políticos se tornam inimigos pessoais a abater pela intriga e pela vitimização. O simétrico deste preconceito político instalado é que tudo o que não traga o rótulo miraculoso merece desconfiança e labéu de intruso, a pedir que se cerrem fileiras contra a ameaça aos “naturais” detentores do poder. A este baluarte convém a abstenção, convém que o voto democrático seja talhado fechando-se alternativas, agitando-se papões e medos irracionais, impedindo que os eleitores acreditem que há outras formas de exercer o poder. A essa “esquerda” convém que as pessoas acreditem que não há nada a fazer, que o seu voto não conta nada se não for a favor deles, que fiquem nas suas vidinhas e os deixem tomar conta de tudo em paz e sossego. As pessoas que desistem de participar e de votar aceitam este preconceito obsoleto e prepotente e sujeitam-se ao estatuto de autoinsignificância política de que fala o autor que acima citei.
Assim se submetem, passivamente, ao que os outros lhes queiram servir como uma fatalidade.

16 comentários:

José Soromenho-Ramos disse...

Comentário oportuno, de um bom artigo, sobre um inquérito comum (...).
Para quem partiu do país antes de Abril de 74 e voltou há pouco tempo, encontrou um razoável progresso material e uma relativa estagnação mental. Um dos aspectos desta última é a continuada aceitação por uma grande parte dos cidadãos de que a sua voz não conta nas decisões nacionais e nos destinos do país. Como antes, continuam a ser activamente desincentivados de pensar, durante o salazarismo porque o chefe pensava por eles e agora porque os partidos lhes dizem o que pensar através de slogans, cartilhas e discursos demagógicos. O que os franceses chamam “bourrage de cerveaux”. Dizer-se “de esquerda” tornou-se tão confortável, acrítico e falsamente seguro como viver numa banheira de água quente. Ser e agir com um pensamento de esquerda racional, passou a ser reserva de dinossáurios. As direitas são ainda envergonhadas, inseguras ou ideologicamente instáveis. O realismo politico nas sociedades desenvolvidas vai de par com a secularização. As coisas são como são, faz-se o que é preciso, as fantasias são um luxo cada vez mais do domínio privado. Por tudo isso o espaço público fica ocupado por bandos pouco representativos do povo e ainda menos da sua meritocracia.

Tonibler disse...

O resto do texto não me parece muito coerente com a frase inicial que me parece um diagnóstico próximo da verdade. Mas o facto das pessoas deixarem de votar porque, com razão, acham que estão a mudar as moscas (a metáfora das moscas é bem mais assertiva) não é exactamente um problema porque as história nos diz que isso se resolve. É só acabar o dinheiro.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Belíssimo artigo e excelente análise.
As pessoas que se demitem do dever de participar na vida colectiva negam a importância do aprofundamento da cultura democrática e acabam por fazer o jogo dos "bons". Esta demissão consubstancia uma atitude egoísta e individualista que enfraquece o exercício da cidadania, mas que aos olhos dos outros é tolerada. Uma tolerância que não impede o erro dessa negação, prejudicando, porventura, o bem comum que não se compadece com a desistência da participação e do combate. É seguramente um sinal de falta de maturidade democrática. Mas mais tarde ou mais cedo a realidade impõe-se, com a colaboração dos "maus" desiludidos, e o bem e o mal vêm ao de cima.

Suzana Toscano disse...

Caro Caged Albatroz, em duas pinceladas resumiu de forma cristalina o retrato político do País:"Dizer-se “de esquerda” tornou-se tão confortável, acrítico e falsamente seguro como viver numa banheira de água quente. As direitas são ainda envergonhadas, inseguras ou ideologicamente instáveis".Excelente comentário, que acrescentou muita clarezza ao que eu pretendi transmitir. Obrigada, volte sempre :)
Caro Tonibler,como já o vamos conhecendo aqui no 4r, a sua pretensa indiferença não me convence, ou não exprimiria a indignação, o conhecimento das coisas e o interesse com que aqui tem tantas vezes animado o debate.Além disso é novo, tem filhos pequenos, duvido muito que se conforme a ver "quando é que o dinheiro acaba". Por isso vá votar, caro tonibler, ao menos porque tem que reconhecer que, não existindo ninguém perfeito, um é sem dúvida o melhor de entre os que pode escolher, antes que nada valha a pena.
Margarida, como diz o caro CagedAlbatroz as pessoas convencem-se de que não contam nada para os decisores políticos, uma doença grave que é alimentada por essa debilidade democrática. Resquícios do tempo em que votar era uma farsa? Talvez, vem do tempo dos heróis da resistência, assim se auto proclamam,e por aí se ficam.

Tonibler disse...

Mas eu voto, cara Suzana. E sempre naquele que me dá mais garantias de poder assustar mais gente. Infelizmente os meus eleitos não passam do 0,5%...

Suzana Toscano disse...

Huuum, caro Tonibler, sugiro que passe a escolher não quem pode assustar, mas quem pode mobilizar mais gente para o que é preciso fazer. Talvez melhore a sua perspectiva :)

Anónimo disse...

Excelente post - no qual revejo totalmente o que penso. E, como é norma, as coisas com elevação e inteligência convocam outras assim. Não me admira, pois, que os comentários sigam o post. Como diria o outro, uma prova da excelência de conteúdos que é o 4R...

Tonibler disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tonibler disse...

Cara Suzana,

Quem pode mobilizar mais gente? Afinal quem é que nos deu a percepção de autoinsuficiência (ou, na sua versão mais nojenta e menos erudita, de que as moscas são a úncia coisa que muda)? Não foram aqueles que não mobilizavam ninguém, de certeza, por isso é que o resto do texto não é coerente com o princípio.

Nós não votamos para o país, nós votamos para o estado e, ainda por cima, com o intuito errado. Estado deve ser assumido como um mal que deve ser controlado e quem "mobiliza" vende-o como um bem que nos vai salvar. Por isso, a percepção só pode ser real, só mudam mesmo as moscas. No dia em que acabar o dinheiro, ou se mate o governo todo de uma vez ou coisa do género, então pode ser que valha a pena outra vez. Até lá vou votando nos carecas que não gostam de pretos, nos comunistas que acreditam na revolução pela violência, nos religiosos que acham que o país se vai salvar pela fé, etc...Esses, pelo menos, moem mesmo que não matem.
E perco o quê por votar neles? Pois, nada! Como diz o outro, pior num fica!!

Suzana Toscano disse...

Um voto de protesto, portanto, caro Tonibler, o pior é que cada um o vai interpretar à sua maneira e considerar que quem se põe à margem não constitui perigo, continuará tudo a piorar. Na sua tese, o "Estado" não é o País, mas então quem devia governar, as corporações profissionais, os grupos de empresas, quem tomar o poder sem pedir votos? pior fica, de certeza.

Tonibler disse...

Não é um voto de protesto. É um voto de aviso. Quando os carecas chegarem aos 20%, pode ser que os meus concidadãos se assustem.

"Governar", cara Suzana??? Eu tenho "governo", não preciso que me imponham um. Aquilo que preciso com o voto é quem me proteja do governo, não é quem me queira governar. Para isso não há diferença entre as corporações, um professor universitário ou um falso engenheiro porque uma corporação de funcionários públicos é igualzinha a uma corporação de outra porcaria qualquer. E enquanto os políticos não entenderem que servem para proteger os cidadãos do governo e não para se imporem como um, nunca deixarão de ser moscas.

Eu não nego a existência do governo ou a sua necessidade. O país necessita do serviço e desses servidores para o fazer. Aquilo que digo é que as pessoas deixam de votar porque percebem que não vale a pena, porque apenas estão a escolher aquele que quer mandar neles. E isso, temos pena, não precisamos. E escusam de usar o meu voto para justificar o dinheiro que me tiram.

Suzana Toscano disse...

Mandar, alguém tem que mandar, caro Tonibler, mesmo a anarquia é uma forma de governo porque sempre haverá uns mais fortes que outros. O problema é se governam no interesse do colectivo, mesmo que alguns fiquem menos contentes, ou se governam no interesse próprio, caso em que o voto é traído e ficam todos descontentes menos os que se apropriaram do poder. É precisamente disso que fala o artigo que linkei, o post é só uma derivação do essencial.

Tonibler disse...

governam o estado, cara Suzana. Mandam no estado. Não governam o país nem mandam no país. Quem governava o país era o Salazar.
E governar o estado é mandar na criadagem, só isso. Criadagem essa que pode usar armas e violência. E com essas armas e violência usa-la contra o país.

Se eu voto, é para que essa criadagem fique mansa. Não para que um palerma qualquer se transforme em criado aditivado e use os meios postos ao dispor para decidir a minha vida. Por isso, os políticos que não aceitam isto serão sempre moscas. Sempre.

O interesse do colectivo? É uma boa justificação particularmente porque a história está cheia de enérgicos defensores do interesse colectivo, a começar pelo Prof. Oliveira Salazar, que até viva uma vida frugal e morreu no serviço...

Suzana Toscano disse...

Caro Tinibler, e em que País não se importaria de exercer o seu direito de voto? Pergunto por curiosidade e para tentar perceber o seu ponto de vista.

Tonibler disse...

Cara Suzana,

Não sei em quantas línguas se separa o governo do estado, mas sei que para a cultura anglo saxónica, government é estado. É preciso vir para os países subdesenvolvidos como o nosso para se achar que governo é governo do país.

José Soromenho-Ramos disse...

Caí por acaso sobre esta última troca de comentários. Pequena contribuição que se pretende pacificadora:
“Os países anglo-saxonicos” é uma expressão que não tem por onde se lhe pegue, pois não corresponde a nenhuma realidade comum a vários países.
State, government e administration, são interchangeable terms no thesaurus linguístico da língua inglesa, mas precisos na utilização específica a cada um dos paises que pretendem ter uma cultura política descendente da Magna Carta. Exemplos : The Bush administration left a legacy of reckless spending; Her Majesty’s government announced further cuts; Queensland is an autonomous state.
How revealing, indeed, that “Tonibler” seems to mimic the despondency demonstrated recently by his patron saint, the real Toni Blair… adaptada à dimensão do nosso país, claro.