Para o meu amigo Pinho Cardão
Morava na estação. Era um catraio. Nos tempos livres corria pelas redondezas, não para muito longe, a povoação era pequena, rica de atividades e atraía tudo o que havia em muitos quilómetros em redor, os comboios assim o determinavam, como igualmente as fábricas de serração, de sabão, do pez e os grandes armazéns de distribuição, um verdadeiro polo industrial e comercial que tinha vida e dava vida aos que necessitavam de viver. Uma bela época, apesar da pobreza típica de Portugal dos finais dos anos cinquenta e da década de sessenta. Munido de um papo-seco, recheado de uma mistura de manteiga e de açúcar amarelo, corria pela ladeira passando pelo taberneiro, cumprimentando efusivamente os que saíam trôpegos e os que entravam sequiosos em matar a sede com meios quartilhos até sentirem a felicidade a invadi-los de forma grotesca dando expressão às suas formas naturais de ver o mundo. Passava em seguida a toda à bolina em frente da padaria, do barbeiro, do sapateiro, do talho, da farmácia, atravessando com cuidado a estrada. Antes de continuar pela velho caminho de macadame, que desaguava naquele ponto, via do lado direito mais uma tasca, que era coisa que não faltava naquelas aldeias, enquanto do lado esquerdo podia imaginar os tiquetaques do relojoeiro e a mistura dos cheiros da loja de mercadorias, mas continuava apressado, só parava momentaneamente em frente do petroleiro, pela simples razão de ficar inebriado com a mistura do cheiro do petróleo e do bacalhau, que nunca mais esqueci. Do lado direito, um pouco mais à frente, o marceneiro fazia-se ouvir através dos sons despertados na madeira, enquanto do lado esquerdo já se sentia a mistura dos berros do ferrador e do cheiro dos animais, mas só parava mais à frente na oficina do Porrudo, que era primo do meu pai. Trabalhava em ferro e fazia carroças muito lindas. Ficava deslumbrado com a maneira de fazer as rodas. No final colocava uma cinta de aço a toda à volta. Tinha forjas e muito foles, uns mais pequenos e um que era monstruoso. O que eu gostava mais era da forja pequena onde colocava um tipo de carvão muito redondo e duro. Tinha acoplado um pequeno dispositivo a que se tinha de dar à manivela. Ao princípio custava, mas depois ganhava-se balanço e era mais fácil. Quando girava com velocidade surgia um clarão vermelho e em seguida uma chama que gostava muito, baixinha, sem deitar fumo, com uma cor azulada que me fascinava. Queres dar à manivela? Quero. Depois de estar quente, muito quente, enfiava uma barra de ferro que ao fim de algum tempo ficava vermelha. Com uma tenaz retirava-a, punha-a na vertical, olhava, revirava-a e, em seguida, malhava com um martelo fazendo saltar muitas faíscas, dando-lhe a forma pretendia. Parecia manteiga. Mergulhava em água, num recipiente apropriado, ouvia-se o chiar enquanto uma pequena nuvem se levantava, voltando a enfiar a peça na forja. Ao fim de algumas operações, o objeto estava concluído, uma ferradura. Serve-te? Como? Estou a perguntar-te se achas que te serve? Mas eu não sou um cavalo! Aí não? Então és o quê? Um homem, não? Quando começava com esta lenga-lenga via logo que ia sair asneira. Sabes quando é que uma pessoa começa a ser homem? Que diabo de pergunta, pensei eu, e respondia-lhe com silêncio. Já pintas? O quê? Oh minha cavalgadura, então não sabes o que é "pintar". Claro que sabia, o que eu queria era não lhe dar troco, porque aquela rapaziada dos ofícios gostava de se divertir à nossa custa, mas para isso precisavam de pretextos e os pretextos surgiam assim que lhes respondíamos. Entretanto, a conversa interrompeu-se porque o cavalo que estava no ferreiro estava à espera do novo calçado feito à medida. Quando regressou puxou de um garrafão e começou a beber. O calor das forjas fez volatizar a aguardente impregnando as minhas narinas. Queres dar um golo? Não, não bebo aguardente, obrigado. Fazes mal, rapaz, tens que experimentar para seres um homem.
Uns tempos depois soube que estava doente. Fui vê-lo. Estava deitado na cama. O quarto era muito pequeno e a casa humilde, casa de pobre. Perguntei-lhe como estava. Mal. E via-se. A conversa não foi muito longa. Entretanto, pediu-me para tirar o garrafão que estava debaixo da cama. Garrafão? Sim. Estranhei o pedido. Ajoelhei-me e vi um garrafão deitado. Tirei-o. Agarrou-se ao dito, retirou a rolha e com sofreguidão tragou um valente golo. Um longo Ah, perfumado de aguardente, invadiu as minhas narinas. Toma, bebe um golo. Mas eu não bebo. Poderias beber à minha saúde, disse com uma certa tristeza. Incomodado com a situação, fiz-lhe a vontade. Bebi um pequeno golo. Queimou-me a língua e o céu da boca, mas a queimadura continuou o seu percurso, pelo menos até ao estômago, eu bem senti. Olhou-me com satisfação e disse: Já és um homem!
Não morreu na altura, ao contrário do que se esperava, e, curiosamente, acabei por o ver, décadas depois, num funeral. Quem é aquele? É o meu primo, o Porrudo. O quê?! Ele ainda está vivo? Não vês que sim! Pois é, estou a ver, mas...
3 comentários:
Bonita história com a emoção própria daquele tempo e daquela gente embrutecida pelo ofício.
Fez-me recordar as nossas tabernas aqui na aldeia e também o ferreiro com o seu malhar constante no ferro quente.
Votos de um bom ano 2012
Caro Professor:
Cheguei ao 4R e aí tive uma grande prenda de Natal: uma dedicatória do meu amigo, a deixar-me comovido e desvanecido!...Mais um belo texto, por onde perpassam cenas da vida retratadas com tanto vigor que parecem ainda reais. Na corrida, está lá o burburinho das actividades que se desenvolviam junto às estações do caminho de ferro, centros vitais naqueles anos,as tascas, os cheiros, os perfis das gentes,as profissões. A descrição da forja, do fogo, do malhar e moldar do ferro, do arrefecimento na água, do retornar ao calor, e do aprimoramento final, dos dichotes de ocasião, são uma delícia de escrita, de precisão e de arte.
E fico satisfeito por lhe ter dado aso, como referiu em comentário ao meu post anterior sobre o Sr. Emídio, a este belo momento de escrita e retrato de uma época.
Comovido e sensibilizado. Um abraço, caro Professor.
Leio estas recordações e perpassam-me também pela memória um largo conjunto de pessoas que, de um modo ou de outro, se tornaram inesquecíveis.
Alguns, não pelas melhores razões.
Naquele tempo o alcoolismo era uma tara que atingia grande parte da sociedade rural. As jornas eram (mal) pagas com uns tostões e um a dois litros de vinho. Desses hábitos ainda hoje subsistem sequelas sociais apesar da intensa urbanização observada nas últimas décadas, posicionando-se Portugal nos primeiros lugares dos
maiores bebedores de alcool do mundo, segundo a OMS.
Um dia destes conto dedicar uma nota no meu bloco ao Pelúcio, um tipo que não alternava, ou porque andava sempe borracho ou tinha-lhe ficado o jeito cambado de andar e o olhar nublado para toda a vida.
Ontem, recordei-me do Anacleto, um tipo que era apontador nas obras de um palácio sem saber contar e ouvia como ninguém porque era surdo como uma pedra.
Boas festas!
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