Discute-se imenso, por vezes com muita paixão, a questão do direito à eutanásia, que muitos consideram ser uma iniquidade, um atentado contra a vontade divina a quem é atribuída o direito exclusivo de dispor da vida e da morte. Compreende-se que mexer na vida, encurtando-a, possa ser considerado como um crime, um atentado aos direitos humanos, porque, apesar das condições em que é pedida, dramáticas, impossíveis de resolver, pode levar a um abuso ou banalização. Presumo que são estes os dois perigos, o não respeito pela vida concedida por um deus e o risco de banalização.
A maioria dos países opõem-se à eutanásia ativa, embora "fechem" os olhos à "passiva" ao considerarem o "encarniçamento terapêutico" como uma forma inumana, violenta e obscena de prolongar inutilmente a vida à custa de meios terapêuticos que hoje são bastante sofisticados. Este último aspeto parece ser consensual mesmo entre os obedientes da vontade divina. Um passo positivo. Quanto à eutanásia ativa as coisas são muito mais complexas. De qualquer modo, ao analisar alguns casos concretos, sou confrontado com um misto de aceitação, de compreensão e de dúvida. Nem podia ser outra coisa. Não sei o que faria como médico, nem como doente. Certas situações são extraordinariamente complexas. Tenho que confessar que não tenho autoridade, nem sou capaz de julgar os que fazem eutanásia ativa, nem tão pouco os doentes que pedem para a fazer. Respeito-os, não tenho outra alternativa.
Chamou-me a atenção a história de dois irmãos gémeos, que nasceram surdos, e acabaram por sofrer várias doenças, entre as quais a cegueira, acabando por serem sujeitos, a pedido, a eutanásia. Viveram e trabalharam sempre juntos, eram sapateiros. Quando se confrontaram com a ameaça de cegueira irreversível, sentiram que lhes seria impossível comunicar. Um sofrimento demasiado atroz para uma alma dividida em duas. Pediram para que lhes fossem feita eutanásia. Eram belgas, país que autoriza esta prática. Inicialmente foi-lhes recusada, porque não sofriam de doença grave, mortal. No entanto, depois de vários pedidos e análises, os responsáveis concluíram que o sofrimento de não poderem comunicar seria insuportável. A tríade da justificação para a eutanásia estava completa: pedido voluntário, reiterado e refletido; sofrimento de ordem física ou psíquica, o qual deverá ser causado por uma afeção grave e incurável.
Nasceram do mesmo ovo, dividiram a alma em duas, sofreram as mesmas doenças, nunca falaram um com o outro, viveram e trabalharam sempre juntos, comunicavam com os olhos, e quando estes ameaçaram apagar-se sentiram uma dor insuportável por não poderem nunca mais comunicar. Encontraram a solução, voltaram a ser uma única alma.
Respeito-os.
3 comentários:
Acho que para se formar uma opinião concreta sobre a legalização da eutanásia, ha que ter préviamente conhecimento do sofrimento por que passam aqueles que por serem acometidos por diferentes generos de males, entram num estado que a própria medicina, com todas as técnicas mais sufisticadas de tratamento, consegue fazer reverter, acabando por falecer.
Durante o período em que o doente se encontra nesse estado, mesmo que lhe sejam administrados produtos químicos que o inibam de sentir dor, nada o inibe, caso esteja na posse das suas faculdades mentais, de sentir o desespero da sujeição a um tempo de espera, que não lhe confere qualquer esperança de utilidade.
Para os familiares desse doente, o sofrimento não é menor, em algumas situações, penso que possa até ser superior, na medida em que durante aquele tempo, faz a ponte entre diferentes sentimentos e angústias, entre o sentimento de querer a todo o transe manter a esperança de que a cura se realizará, sabendo que ela é impossível. Um desespero evitável se houvesse, penso eu, um pouco mais de respeito pela pessoa humana, dando-lhe um fim de vida pacífico e, do meu ponto de vista, mais honroso.
Quanto às convicções religiosas... entendo que tirar a vida a outro, como acto de misericórdia, não pode ser de forma alguma entendido como contrariar os desígnios divinos.
Pode existir algo ininteligível para o ser humano que impessa Deus, de nos retirar a vida (acontecendo esse facto sempre sem a sua intervenção directa) mas nada nos impede de abreviar o sofrimento alheio, antecipando-lhe a morte, desde que, de uma forma dígna.
Concordo consigo, é muito difícil decidir, mas merecem todo o respeito e compaixão pelo seu sofrimento.
Nâo sei se o problema será fundamentalmente religioso, se as pessoas professam uma religião que recuse a eutanásia não será a permissão da lei que os levará a utilizá-la. Mas, além disso, parece-me muito difícil desenhar uma lei com contornos tais que defenda em absoluto a vontade das pessoas e as suas circunstâncias, não conheço a lei belga, mas tenho tanto receio que estes direitos passem a possibilidades e, depois, a probabilidades...
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