Foi há muitos anos. Encontrei este quadro perdido no meio de umas velharias. Sujo, a própria moldura, esburacada, transpirava serradura molhando o preto e a própria tela com um amarelo escuro. Lembro-me de ter espirrado e ficado com algum ardor nos olhos. O dono da loja olhou-me com algum espanto e perguntou-me o que é que tinha achado. Estava um pouco afastado e mostrei-lhe ao longe numa zona escura da loja. É pena estar nestas condições. Já deve estar aí há muito tempo, já nem me recordava. É pena estar nestas condições, repeti, porque gostava de o adquirir, mas parece-me que se desfaz todo. Coloquei-o no chão entre uma amálgama de ferros e de outras porcarias que deitaria fora no primeiro contentor. Olhe, mesmo assim, se quiser ficar com ele só tem que pagar cinco contos. Naquela altura, cinco contos já se tinha quase transformado numa ninharia. Fiz de conta que não estava interessado, mas estava, claro. O quadro emanava tanta coisa, era tão belo e ainda por cima "cubista" e tinha decidido não o perder. Mas mesmo assim, ao contrário do que era habitual, mostrei um certo desinteresse. Quis ver se conseguia obtê-lo por uma quantia mais baixa, não porque fosse caro, mas queria testar se tinha algum jeito para regatear, coisa que não abunda nos meus genes e muito menos na minha região frontal. É caro. É pena estar neste estado. Olhe que é bom, o autor até vem num livro de pintura, quer ver? O safado sabia o que tinha e abriu um grosso volume de pintores portugueses e mostrou-me, este é o autor. Tinha o nome e um outro pequeno comentário sobre o seu estilo. Está bem, levo-o. Desisto de regatear, pensei. Ia a retirar uma nota de cinco mil para pagar quando o dono me disse, bom, vai levá-lo apenas por dois contos e meio, de facto está sujo e em mau estado. Paguei e saí com o quadro embrulhado em duas folhas de jornal debaixo do braço. Ia muito bem-disposto, porque tinha a certeza de ter feito uma bela compra. Durante o curto tempo em que estive a analisá-lo na loja fiquei perturbado com os olhares tristes e sem esperança do casal de meia-idade. A mulher, com um olhar longínquo a ver se encontra explicação para a sua prisão e tristeza, deixa transparecer o vazio da existência. O homem, mais afoito e desprendido, denota no seu olhar uma raiva contida pela perda da liberdade. Ele sabe que tem direito à liberdade e por isso questiona e desafia os adeptos da opressão. O cigarro pendente dos seus lábios testemunha o calor que incendeia a sua alma. As barras da pequena gateira deixam antever o brilho do sol livre e quente, do sol da vida, que um dia prometeu que seria igual para todos. A estrela vermelha traduz o sangue da dor dos que foram privados da liberdade.
Adoro este quadro, talvez um dos que mais me tocou ao longo da vida. Belo, expressivo, doloroso e que faz pensar o que é o sofrimento humano na sua expressão mais pura, a perda da liberdade. Uma bela obra de arte encaixada numa moldura carunchosa.
A minha filha mais velha mostrou um dia interesse nesta obra de arte. Ofereci-lhe com muito agrado e sempre que vou a sua casa vejo-o, vejo-o com olhos da alma e da estética, e cada vez mais me convenço de que é uma obra de arte e fonte de permanente reflexão.
Não o regateei, acabou por me ser oferecido. Por vezes até me convenço que foi ele que me escolheu. Mesmo que não tenha sido, gosto de acreditar que sim.
Gosto da liberdade.
Viva a liberdade. O maior bem do ser humano. Basta olhar para este quadro para compreender o significado da sua ausência.
1 comentário:
Uma análise muito profunda do quadro. Quem será o seu autor?
Um homem com uma bóina e um cachecol. Da forma como o cachecol está posto dá-me a impressão que não combina com a senhora de lenço na cabeça. Dois estilos diferentes. Tb ficaria com o quadro.
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