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sábado, 1 de fevereiro de 2014

"Senhor da Ponte"







Tenho saudades, confesso. Muitas saudades. Cresci e vivi na sua companhia. Nas muitas idas e vindas à vila tinha de passar por ele. Muitas das vezes parava, espreitava, dizia-lhe adeus e algumas vezes até lhe dava uma moeda. Ele olhava, não dizia nada, mas sorria à sua maneira. Durante anos foi o meu ponto de referência, de confiança e até de esperança. Partilhava dos meus segredos, ansiedades e eu acreditava nos seus cuidados e atenções. Nunca ninguém se esbarrou contra ele. Nunca. Entravam a cem à hora na ponte, e ele gozava com o atrevimento, assim que ameaçavam entrar pela capela dentro, o meio peão, o chiar dos travões e o descascar dos pneus davam por terminada a investida contra ele. Ele gostava, posso mesmo dizer que adorava, conhecia de cor os "Fângios" da época, o Senhor Regadas, o Carlos Adelino e o acelera do Arlindo com a sua mota. Andei com os três, e ao chegar aquele ponto, crítico, calava-me e benzia-me mentalmente. Presumo que só continuava a respirar depois de ter dado a curva. Ele gostava de tudo isto, dos aceleras, dos peões que calcorreavam a Via Cova ou a Calçada Velha, dos carros de praça, velhos ronceiros, das mulheres descalças que levavam o almoço aos homens que trabalhavam nas fábricas na Estação, dos crentes que lhe faziam promessas e das carroças puxadas pelas mulas. Ele gostava de tudo isto, sempre fechado no seu silêncio, mas vivo de emoções e preso aos múltiplos encantos que ouvia e via a toda hora, fosse de dia fosse de noite, houvesse alegria ou jogasse tristeza vinda do céu ou das almas que por ali passavam. Ele gostava. Não sei se via, mas ouvia as águas do rio a correr pachorrentamente ou com muita violência debaixo da ponte que lhe deu o apodo. Ele gostava. Eu também gostava dele. Não me lembro uma única vez que tenha passado por ali, e foram tantas, meu Deus, que não o cumprimentasse à minha maneira. Depois, um dia, para não morrer afogado tiraram-no daquele lugar. Hoje, passo por ele todas as semanas mais do que uma vez, mas há uma barreira que me impede de lá ir, de o ver e de travar meia dúzia de palavras como fazia nos velhos tempos. Mando-lhe pelo ar, em silêncio, algumas frases e outros tantos pensamentos. Eu sei que ainda se recorda de mim. Eu nunca o esqueci, mas tenho pena de o terem colocado naquele sítio. Sinto que está triste, solitário e praticamente abandonado. Sei que precisa de ouvir e de ver os carros, mas de frente, não daquela forma impessoal e distante dos que por ali passam sem dar conta da sua existência. Duvido que consiga ver os condutores. Ele precisa de ver, ouvir, sentir e beber as orações dos que querem tocar-lhe à porta. Ele precisa de movimento, de estar em permanente interação com carros, motos e pessoas, de conviver, de partilhar conversas e emoções, de ser o perfeito cúmplice das vidas das pessoas. Mas ali, naquele local, não consegue. Está triste. Deve mesmo chorar durante a noite. Chamam-lhe o Senhor da Ponte. Para manter o seu nome Ele precisa apenas de viver à entrada duma ponte sob a qual corra água. Não é preciso ser uma ponte especial, nem que a corrente de água seja a de um rio, uma ribeira também serve. Se O colocassem naquele espaço junto à "casa paroquial", em frente da igreja, do outro lado da rua, junto à entrada do viaduto, estou certo de que recuperaria a alegria e iria ajudar todos os que por ali passassem. Estou certo de que gostaria. Não se sentiria abandonado e faria a felicidade de muitos. A mim dava.

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