Entrou. Não falou de imediato. O olhar revelava incerteza e atribulações quanto à dureza da vida. Foi o marido que tomou a dianteira. Explicou sem rodeios o que estava a acontecer. Tinha a certeza de saber qual o diagnóstico da situação.
- Há sete anos que cortámos relações com a mãe da minha mulher. Agora está gravemente doente. Tem um tumor maligno, está cheia de metástases, e a filha - que a seu lado ouvia sem dizer uma palavra, começou a relacionar-se intensamente com a mãe. Tão intensamente que não dorme, não come e só fuma. Assim, direto, sem meias palavras, sintetizou um quadro familiar, o aparecimento da doença e o viver amargurado da mulher. Olhei-a e pedi-lhe com o meu habitual silêncio que dissesse qualquer coisa. Mas não disse nada. Fiz duas ou três perguntas circunstanciais, de rajada, sem lhe dar tempo para responder, até que me centrei apenas numa, convicto de que já estaria a tomar qualquer coisa. O que é que está a tomar? Mostrou-me, uma bordoada química à maneira, daquelas que nos fazem sentir como mortos-vivos. O marido interrompeu. - Passa o dia a dormir e sem reação. Confirmava-se a minha suspeita. Não quis entrar em pormenores, limitei-me apenas a aconselhar o que se deve fazer naqueles casos, casos que conheço bem demais. Antes não os conhecesse. Tentei criar uma aura de superioridade para garantir a eficácia das minhas palavras. Ouvia-me esperançada, sim, esperançada, porque julgava que os fármacos seriam uma qualquer solução milagrosa. Não são, nem para lá caminham. Mesmo assim expliquei-lhe o que fazer, e por que razão deverá proceder naturalmente perante a morte que se avizinha. Claro que compreendeu, mas quem não compreende estas coisas quando elas nos batem à porta? O pior era o resto, aquilo que não tinha sido explicado, mas que já tinha passado pela minha cabeça, sentimento de culpa. Pareceu que leu a minha mente e antecipou-se dizendo que não era uma questão de sentimento de culpa, até porque a mãe já tinha confessado a terceiros a sua responsabilidade. Não dei motivos para continuar a expressar-se daquela maneira, embora o marido tivesse traçado algumas características que imediatamente ignorei. Avancei com mais uns comentários e expliquei-lhe como proceder, tentando eliminar o passado e fazendo-lhe ver que o que importa é o presente.
- Viva o tempo que lhe falta, viva, sejam sete meses, sete semanas ou sete dias, mas viva-os separado dos sete anos em que estiveram ausentes. Baixei os olhos, fiz a medicação que melhor lhe servia, se é que servia para alguma coisa, mas levou na alma conselhos, opiniões e a forma de encher corações despedaçados pelo tempo e pela incompreensão. O amor emerge nas mais estranhas ocasiões como é o caso da morte anunciada, e do sofrimento que lhe serve de muleta. Nestas alturas, o despertar de emoções únicas fazem-nos ver realmente o que somos e o que desperdiçámos ao longo da vida.
Sete anos de vida perdidos, sete semanas de esperança.
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