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domingo, 24 de dezembro de 2006

História de um Natal

Era uma noite de Natal chuvosa e fria, como eram as noites da minha terra beirã. As bátegas de água sopradas pelo vento batiam em rajadas nas janelas da casa, altas como portas, e mais adensavam o frio que se sentia, quando se saía da lareira.
Terminara a consoada, com os meus pais e a minha irmã (nunca conheci avós, cedo desaparecidos), com uma tia e com a minha madrinha que viviam connosco, com a Deolinda, criada de há longos anos, que dava uma mão na casa e outras nas terras, a Silvina, miúda de dez ou onze anos e a terceira classe, cuja principal tarefa era “ir” com as ovelhas e o João, que dava um jeito na lavoura (ainda o Sr. Emídio, a que me referi o ano passado, não fazia parte do jantar...) e já tinham passado dois ou três grupos a cantar as Janeiras. Estava agora chegado o momento de pôr o sapatinho na lareira, dar um beijo a todos e ir para a cama. Pois, nessa noite, teimei, com a ajuda da minha irmã, que todos deviam deixar o sapato, já que o Menino Jesus era bom e devia ter prendas para todos. Explicavam-me então que a noite era invernosa e, com tanto vento, o Pai Natal, para poder subir aos telhados e descer pelas chaminés, não podia trazer nem saco muito grande nem cheio. Dizia eu que o Menino Jesus podia tudo. Podia, mas quem trazia as prendas era o Pai Natal e o saco molhado pesava muito, mais do que ele podia aguentar sem cair…mas nada me convencia, nem o facto de me dizerem que o Pai Natal tinha longas barbas, tão longas que o atormentavam tanto como a idade, e que até já andava com as costas muito tortas, mal podia com um saco levezinho…Por isso, eu devia era ter pena do Pai Natal!...
Já a minha madrinha me tinha colocado a botija na cama para aquecer os lençóis e não deixar arrefecer os pés e continuava naquela luta. Para o ano, se estiver bom tempo, o Pai Natal vai lembrar-se de todos, dizia o meu Pai. Pedi então que, pelo menos, a Silvina, que também era pequenina, deixasse o tamanco na chaminé. Foi neste transe que a minha mãe enfim condescendeu, logo se via se o Pai Natal tinha lembranças que chegassem… Mas, se as prendas não fossem suficientes, elas eram para os donos dos sapatos em que estivessem e depois não me podia queixar!... Só então fui para a cama e até rezei uma avé-maria a pedir para que todos fossem contemplados, não sei se por solidariedade profunda ou por medo de nada me calhar…Mas devo ter dormido serenamente, como se dorme numa noite de Natal.
No dia seguinte, ainda a luz das estrelas estava viva no céu, ouço gritar a Silvina junto à minha cama: menino, menino, vá ver a lareira, vá ver a lareira, há lá prendas para todos!…
Levantei-me de um salto e em todos os sapatos havia um pequeno embrulho!…
Levei o meu para a cama e, embalado na ideia de que o Menino Jesus de facto é mesmo bom e poderoso, comi um bombom e tornei a adormecer docemente, até me chamarem para ir à missa de Natal. Excitada estava a Silvina, dava-me beijos e abraços, pois tinha sido a primeira vez que fora contemplada pelo Menino Jesus!...
Estão a ver, dizia eu aos meus pais, se não tinha teimado em pôr os sapatos…
Pois é, se fores bom, há sempre um Menino Jesus que vai velar por ti!...

2 comentários:

João Melo disse...

sempre em grande forma dr pc.abraço!

Suzana Toscano disse...

Lindo conto, Pinho Cardão, em grande contraste com os Natais na cidade e nos centros comerciais! Uma lufada de ar fresco...