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domingo, 1 de maio de 2011

Histórias

Gosto de ir jantar a uma taverna, pomposamente designada de café, localizada num povoado quase desprovido de gente. Um ambiente calmo, apenas interrompido pela entrada e saída de alguns clientes, os quais leem ao balcão o jornal da terra ou comentam histórias e acontecimentos, sem levantar muito a voz, o que me permite ouvi-los, se quiser, sem qualquer incómodo. A televisão habitualmente desligada ajuda a criar conversa. E conversa-se, o que é muito bom. O serviço não é demorado, o suficiente para ensaiar alguns temas. Quase que me atreveria a dizer que fazem de propósito. Uma combinação feliz a que não é alheia a descrição e simpatia dos donos. O tempo ganha uma dimensão própria e eu acabo por concluir que ali se pode contar e ouvir histórias. E os temas começam a brotar uns atrás dos outros numa sequência aparentemente ilógica, mas que de ilógico não tem nada. Brotam porque há condições para isso. “Hoje de tarde a senhora disse que...”, o suficiente para ir ao passado buscar outras histórias combinando-as com as do presente. Uma, outra e mais outra, uma delícia. “Ouve, o tal senhor fala bem e conta as coisas de uma forma elegante e percetível, não achas?”. Não estou a ouvi-lo. “É para admirar”. Sorri. Subitamente descobri por que é que gosto de ir aquele espaço, é um verdadeiro útero, que permite incubar histórias, e os seres humanos adoram histórias, fazem tudo por ouvir ou criar uma história. Não são só as crianças que gostam de ouvir contar histórias, os adultos também. E é tão fácil criá-las. Um acontecimento ocorre de uma maneira, depois conta-se de forma ligeiramente diferente, e com o tempo ganha vida própria como se fosse um vírus mais ou menos violento, mas mais mutante do que o vírus da gripe. Muitas histórias perdem-se, infelizmente, no tempo, enquanto algumas, poucas, são apanhadas pelo papel e transformadas pelo narrador. Jantámos, contámos histórias, refizemos algumas e proporcionámos temas para o futuro. No final, um amigo, que passou o jantar a falar ao balcão com uma pessoa que não conheço, levantou-se e, delicadamente, veio cumprimentar-me. Atencioso e simpático como sempre, contou-me, pausadamente, em poucos minutos a seguinte história: "Hoje estou feliz, passei o dia numa quinta com os meus camaradas da Guiné de há quarenta anos, uns estão na mesma, outros estão carecas, uns mais velhos, enfim, o habitual. Sabe, senhor doutor o que mais me agradou? Falámos de tudo, mas nem uma só palavra sobre o que lá se passou há tantos anos. Para o ano vamos reunir novamente, mas nunca num quartel, numa quinta, onde possamos contar histórias e conviver". Feliz, e naturalmente um pouco mais pausado do que é habitual, despediu-se desejando-nos um bom fim de semana, com um largo sorriso.
Uma história curta, em que o passado horrível e tenebroso não foi recordado, nem uma palavra sobre a guerra. A guerra foi substituída pelo desejo de viver e a necessidade de contar histórias no futuro, e continua passados quarenta anos. Aquele espaço tem encanto. Às tantas é mesmo uma incubadora de histórias...

6 comentários:

Bartolomeu disse...

As histórias contadas pelas pessoas simples das aldeias, são algo de maravilhoso que aproveito sempre que tenho oportunidade.
Aqui, na aldeia próxima de onde vivo, nas noites de verão, é hábito reunirem-se as pessoas para aproveitar o sereno e conversar.
frequentemente recordam, encastoando (porque de joias se trata) umas histórias nas outras, uns acontecimentos nos outros e recordam com saudade o tempo de juventude, o tempo de início de casamento, os filhos, os trabalhos no campo, o dia em que chegou à aldeia um carro preto muito grande e dele saíram dois senhores de fato escuro, gravata e chapéu... éram do governo, da.. pide ó lá o que era, mas sabe Sr. Bartolomeu?agente aqui, naquele tempo não sabia nada das coisas e nem percebia o que eles estávam a préguntar. Depois como viram que não se safavam, préguntaram adonde é que havia uma casa de pasto prálmoçarem; aqui no ha nada disso, mas ali a ti Maria disse-lhes logo que uma tijela de caldo e umas batatas com couves e um naco de toucinho arranjava-se sempre, se quisessem. Sabe Sr. Bartolomeu a vida naquele tempo era de misária, mas agente cá sarranjava com os cultivos e não passávamos fome. Não se comiam as coisas que se comem hoje e o conduto era só nos dias de festa. Hoje é que se vai ó talho e compra-se logo - como eu veijo lá munta gente - quilos de carne. Naquele tempo, matava-se o porquito, desmanchava-se e metia-se uma parte na salgadeira, outra fritava-se e metia-se na banha e do resto fazia-se os enchidos e aquilo dava para o ano todo, com mais uma franguita que se matasse se alguém estava doente, ou se parisse, e um naquito de bacalhau lá quando o rei fazia anos. Do resto era as batatitas todo o ano e o feijãozito, as favinhas... ai Sr. Bartolomeu havia de provar umas boas favas com chouriço, como eram aquelas do mê tempo...
E fico ali horas, viajando à borla pelos tempos e pelas histórias daqueles amigos que tanto prezo.
Quando regresso a casa, vindo pelos caminhos da mata, sinto que trago comigo o espírito daquelas almas que os percorreram noutros tempos, tal como eu.
Quando eu for, juntar-me a eles, provávelmente os que ficarem, vão recordar nas conversas ao serão das noites de verão no largo da aldeia, um certo Bartolomeu que um dia veio lá de Lisboa viver para este fim-de-mundo... vivia ali no alto daquele monte... vejam lá onde é que o homem se lembrou de ir fazer uma casa... a minha avó ainda o conheceu bem, diz que vinha a pé mais a mulher pelo meio das matas, de noite, a primeira vez que veio à aldeia, as pessoas até se assustaram quando os viram aparecer, julgáram que eram almas penadas, ou lobisómens, mas depois, quando eles disseram quem eram e onde moravam, é que começaram a perceber e até gostávam mjuito deles, achavam-nos muito simpáticos, vinham aqui muitas vezes para conversar.
http://www.youtube.com/watch?v=mq5ioDWV0DI
;))

Anónimo disse...

A vida é bela quando feita de coisas simples, meus caros amigos.

José Soromenho-Ramos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Soromenho-Ramos disse...

Desde a minha "cidade branca" na costa, até ao "poiso" ocasional nas montanhas do interior, passando por uma grande parte do mundo, considero que os portugueses continuam a ser bem descritos por José Afonso em:
http://www.youtube.com/watch?v=yKEaerOoYuA&feature=related

Bartolomeu disse...

Naturalmente, caro Dr. José Mário!
;)

Bartolomeu disse...

Bem recordado, caro Caged!
A minha vida já passou também por muitíssimos locais, tenho sido afortunado no aspecto em que me tenho sentido muito bem, em todos eles e tenho encontrado motivos de encanto em todos eles, também.
O local onde resido actualmente, desde à cerca de 20 anos, compõe-se de vários aspectos que me fazem sentir excelentemente bem. É um local de vistas amplas, não está longe da capital, e renova-se a todo o instante. Portanto, um local que me mantem também em permanente mudança. Para além disso, fui eu que desenhei a minha casa e que tenho plantado as árvores, que lavro, cavo semeio e colho. Este cíclo e este processo de interactividade com a terra, as plantas e os animais, transmite-nos uma sensação de imensa felicidade. Além do mais (ainda) no local onde vivo, sentem-se os elementos em toda a sua realidade e verdade. O vento, a chuva, a trovoada é um espectáculo de incomparável beleza e ao mesmo tempo, um exercício real de constatação da nossa pequenez.
Em suma, caro Caged, como cantava o Zeca... nunca sabemos onde iremos morrer, sabemos que andamos pelo mundo...
;)