1.Aquilo a que tenho aqui apelidado “retórica da desculpabilização” – a utilização das desculpas mais variadas, por porta-vozes ou “opinion-makers” afectos ao regime para imputar a terceiros a responsabilidade pelas graves consequências dos erros de política próprios – constitui hoje uma tarefa dominante ou mesmo obsessiva.
2.Todos os dias somos bombardeados com novos afloramentos dessa “retórica da desculpabilização”, que assim procura confundir os cidadãos, tentando leva-los a acreditar, por exemplo, que as dificuldades que estamos suportando (e que vamos continuar a suportar, com acrescida gravidade) têm sobretudo uma origem externa...
3.Numa das modalidades mais em uso, muito frequente por exemplo em debates televisivos, é normal ouvir-se a referência a uma crise da Europa, em particular da zona do Euro... “que diabo, isto é uma crise europeia, não somos só nós” (refrão)...
4.Fica assim “explicado” que as nossas dificuldades são mais ou menos comuns aos restantes países europeus, o que assegura naturalmente absolvição dos graves erros de política que nos lançaram neste calvário de dívidas e que nos vão endividando mais e mais...
5.Em recente mensagem natalícia, num estilo realmente incurável, foi-se ao ponto de explicar que todos os países da Europa foram obrigados a “rever as suas agendas” - formula redonda, mas hábil, de lavar as causas, sobretudo domésticas, dos problemas gravíssimos que enfrentamos...
6.Estamos em presença de um gigantesco exercício de desinformação, que recorre a todos os meios e que conta com uma colaboração activa ou passiva da generalidade dos “media”, sendo muito poucos aqueles que lhe resistem.
7.Recordei-me deste gigantesco exercício de desinformação quando li, na edição do F. Times do pretérito dia 19, um interessante artigo de Tony Barber (“Expect adventures in euroland until leaders craft a plan”), no qual parodia a ideia de crise na Europa.
8.Barber cita a Alemanha, que representa cerca de 30% do PIB da zona Euro, cuja economia deverá crescer este ano cerca de 3,5%, graças sobretudo ao desempenho das suas exportações (sendo que, conjuntamente, os mercados de Portugal, Grécia e Irlanda não chegam a 2% dessas exportações...) e em que a confiança dos empresários apresenta, no corrente mês, o valor mais elevado desde...Janeiro de 1991!
9.Barber questiona, com humor, essa falsa ideia de crise na Europa, reconhecendo que a crise existe em alguns países, sim, fruto do enorme desequilíbrio das suas economias e do sobre-endividamento...e que essa crise pode ainda agravar-se se não houver uma resposta convincente da parte dos lideres europeus.
10.Aqui chegados, é pois altura de perguntar aos habituais porta-vozes e “opinion-makers” do regime: onde é que está a crise económica da Alemanha? E a da Austria, da Holanda, da Finlandia, do Luxemburgo, da França, da Bélgica, da Eslováquia ou mesmo da Itália? E que “mudanças de agenda” são esses países obrigados a fazer (a não ser trocar a de 2010 pela de 2011...)?
6 comentários:
Há uma crise de identidade europeia, a Europa dos povos e dos trabalhadores foi vergada ao poder do dinheiro, vitimada pelos especuladores da economia de casino. Principalmente os países como Portugal que se viram obrigados a salvar a banca, como por exemplo o...aquele do..., enfim foram biliões que agora não querem devolver.
Caro Tavares Moreira,
E depois dizem que o povo tem a mania de atirar com as culpas para cima dos outros...
Belo comentário, caro Tonibler, belo comentário...mas esqueceu os americanos que atentam contra o Euro, à revelia de Obama, bem como as agências de rating - foi propositado ou já se reconciliou com esses dosi grupos?
Caro Fartinho da Silva,
Tem toda a razão...O "Povo" aprende, naturalmente, com o que fazem "os de cima", confia no que eles dizem...não há pois que culpa-lo por esse gesto de confiança!
Caro Tavares Moreira,
Nãos e trata de reconciliação mas a Alemanha de Merkl não é muito diferente de América de Bush, em que os seus governos da extrema-direita neoliberal continuam a torpedar a Europa dos cidadãos e as agências de rating, como diz bem o camarada Louçã, perderam muito da sua credibilidade a favor das novas correntes do conhecimento económico que atribuem ao estado um papel fulcral no desenvolvimento económico sustentado e do bem-estar social. Século e meio não é tempo suficiente para estas ideias vingarem num mundo dominado pelo grande capital e pelas políticas do quero-posso-e-mando, mas lá chegaremos.
Caro Tavares Moreira
O artigo de hoje, 30/12/10, no Público assinado por Helena Ramos explica, parcialmente, a questão que levanta, (no seu post), sobre a assumpção de responsabilidades. A esta caracterísitca, temos de acrescentar mais uma: o claro afastamento das nossas elites e do povo em geral do devir europeu. Como se passa com os gregos, a associação europeia foi sempre encarada com a natural reserva mental de um país que há mais de 150 anos vive afastado do centro europeu.
Não tendo qualquer ilusão sobre a classe política e a maioria das elites nacionais, o exercício de ilusionismo que descreve, não me surpreende. O que discordo, parcialmente, é a existência apenas, de dolo. Na verdade, a ilusão é, também, fruto da ignorância, provincianismo e iletracia nacional. Por isso, no final do processo que nos poderá fazer sair desta enrascada, teremos menos 50/60% do número actual dos actores políticos em exercício.
Nesse sentido, pouco mais há a acrescentar ao seu post neste capítulo: a entrada do FEEF, os cortes introduzidos, a inflacção, o aumento das taxas de juros e a incapacidade de mobilização nacional, cumprirão a função de "peneirar" os próximos actores políticos.
O que me preocupa no actual quadro, é que não existe um enquadramento, uma contextualização do nosso posicionamento no quadro europeu. Habituados a falar e a viver para o umbigo, perdemos a capacidade para pensar no quadro em que nos encontramos. As "fugas" para a frente, como seja o esmolar junto de países terceiros é, mais do que um crime, um erro; estamos num clube e essa pertença acarreta obrigações escritas e não escritas que, parece, estamos a "esqueçermo-nos". Os custos intangíveis desta política são enormes e perdurarão e influenciarão mais além do que o período de amortização da nossa dívida.
Os custos a longo prazo das opções, das acções e omissões de dos próximos 2/3 anos poderão ser um fardo muito grande para mais do que uma geração. A preocupação, por esse motivo é grande
Desejo-lhe um Bom Ano e receba os meus cumprimentos
joão
Diz muito bem, caro Tonibler, "as novas correntes do conhecimento económico que atribuem ao Estado um papel fulcral no desenvolvimento económico sustentado e do bem-estar social"!
Estamos exactamente no momento em que começam a sentir-se, em grau crescente, as enormes vantagens da atribução desse "papael fulcral" ao Estado...
E certamente mais iremos sentir essas vantagens nos próximos anos, faendo inveja áqueles, como os americanos, alemães, holandeses, ingleses, austríacos, finlandeses, luxemburgueses - e até chineses e indianos - que, não enjeitando o Estado ou mesmo sustentando um Estado muito forte, têm vindo a manter ou a aceitar um papel fulcral do mercado!
Caro João,
Tem muita sabedoria o seu comentário - sem surpresa.
Quanto à questão do dolo, que entende não explicar por completo o comportamente dos cultores da "retórica da desculpabilização", eu tenho a noção de que se trata já de uma questão menor...
Parece-me que, com mais ou menos dolo - necessário, eventual ou de outros tipos - já nada nos pode afastar do caminho que nos conduz ao Everest da dívida, alegres, felizes e no conforto do Estado Social!
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