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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Eu ouvi e não esqueci...

Há dias abri a revista da Ordem do Médicos e confrontei-me com uma notícia sobre a comemoração dos dez anos do desaparecimento do professor Machado Macedo que foi bastonário da Ordem dos Médicos.
Lembro-me tão bem dele. Um príncipe.
Eu ouvi e não esqueci...


Abri a revista e folheei-a indolentemente, sem intenção de a ler. Uma rápida leitura pelos títulos, porque às vezes pode surgir algo de interesse. Foi o que aconteceu, li que se tinha realizado uma cerimónia, a propósito do desaparecimento do professor Machado Macedo ocorrido há dez anos. Dez anos? Antes de ler o conteúdo perpassou-me pela mente alguns episódios e recordações, não muitos, mas qualquer um deles suficientemente diamantino para ser esquecido.

Travei conhecimento pessoal, pela primeira vez, em Santiago de Compostela, após as eleições para a Ordem dos Médicos. Tinha acabado de ser eleito como membro do Conselho Regional do Centro. Uma apresentação cordial acompanhada de algumas palavras de circunstância. Nessa altura, nos intervalos das reuniões com médicos de toda a Europa, começámos a conviver amiúde.

Como seria de esperar tivemos de visitar a Catedral. À saída tirámos uma foto na escadaria. O meu filho mais novo, com cinco anos, teve de ir connosco. No momento de tirar a fotografia, a minha mulher afastou-se com o gaiato, mas foram interrompidos, chamando-os para integrar o grupo. Pegou na mão da criança e apresentou-o aos colegas das outras nações como o elemento mais novo da comitiva portuguesa. A partir daqui o raio do rapaz punha-se logo a seu lado sempre que o via. Chegou a ensinar-lhe algumas frases em espanhol com as quais se safava com um à-vontade surpreendente.

A partir de então, sempre que nos cruzávamos, perguntava imediatamente como andava o “colega”.

Outra vez, também em Espanha, desta feita em Barcelona, numa reunião internacional em que deveria fazer um importante discurso final para tão prestigiada assembleia, claudicou na véspera com uma laringite que o pôs totalmente afónico. - E agora? Como vou sair desta embrulhada? Tantos médicos e não conseguem fazer nada! - Qual quê! Com uma boa dose de corticosteroides até era capaz de melhorar rapidamente. - E onde vou arranjar “isso”? - É fácil! - Fácil? - Sim, eu tenho o hábito de viajar com uma mini farmácia - Hum! Hipocondríaco? - Não, disse timidamente, não propriamente, mas apenas por uma mera questão de precaução, nunca se sabe o que poderá vir a acontecer, e como andamos fora da nossa terra... - Pois, pois! Tem razão.

Pensei que o meu atrevimento não tivesse qualquer repercussão. Enganei-me, porque a certa altura disse-me: - Eu queria tanto falar amanhã! E se os tomasse? - É fácil, vou ao hotel buscá-los. E assim foi. Em breve estava a enfiá-los na boca. Mas antes perguntou-me: - Quantos comprimidos devo tomar? Uma chatice! Fiz uma rápida conta de cabeça e proclamei: - Quatro! - Quatro?! Não é demais? - Não, disse com o ar mais doutoral do mundo. Mas nessa noite fiquei um pouco nervoso, com receio de ocorrer algum efeito secundário. Seria um pouco aborrecido se o bastonário acabasse por adoecer ainda mais com a medicação. Afinal, tratar uma infeção com corticosteroides não é muito ortodoxo sob o ponto de vista médico.

No dia seguinte, logo pela manhã, Machado Macedo parecia um rouxinol, com uma voz perfeitamente audível. - Melhor? Perguntei-lhe. - Não ouve? E acabei de enfiar agora mesmo mais quatro. - Mais quatro?! Fiquei inquieto. O melhor é não tomar mais, porque pode ser contraproducente. - Qual quê! Saiu bem-disposto sem se importunar com os meus receios.

Ao final da tarde, com um discurso profundo, elegante e cristalino, na forma e no conteúdo, todo ele de improviso, num Inglês de fazer inveja a um Britânico, encheu a nossa comitiva de orgulho.

Ao jantar a satisfação era mais do que evidente e não parava de me agradecer por aqueles comprimidos maravilhosos. A minha sorte, pensei, era que a caixa só tinha oito e ele mamou-os em duas tomas. Já não corria o risco de lhe provocar problemas. Um alívio.

Mais tarde, sempre que nos encontrávamos, perguntava como ia o “colega” e agradecia a minha terapêutica.

A última vez que o vi foi num congresso de cardiologia, em Vilamoura. Estava triste e um pouco isolado. Cumprimentei-o e perguntei-lhe como andava: - Mal, meu caro, mal! Diagnosticaram-me um cancro na bexiga e agora tenho de ser operado. Querem-me fazer uma nova, sabe, coisas de cirurgião. Ao dizer isto, deixou escapar um discreto sorriso, misto de simplicidade e de aristocracia. Ainda falámos mais uns momentos sobre o livro que tinha acabado de escrever e de alguns episódios passados em comum. Bebemos à saúde de ambos. Tinha vindo apenas à cerimónia de abertura e iria embora logo pela manhã, por causa dos exames para a intervenção que iria fazer nos próximos dias. Desejei-lhe felicidades.

Foi a última vez que o vi.

Quando soube do falecimento, fui encarregado, como vice-presidente do Conselho Regional do Centro, de representar a Ordem nas exéquias. Como ia em missão colocaram-me ao lado do então bastonário precisamente numa cadeira encostada à urna do lado esquerdo.

Muitas pessoas quiseram prestar a última homenagem e algumas aproximavam-se pelo lado direito, a única possibilidade que tinham. Passavam, paravam um pouco, algumas tocavam com a mão na urna, até que assisti a um episódio que nunca mais posso esquecer. Um senhor debruçou-se sobre Machado Macedo e começou a falar com ele com um sentimento de ternura e de sofrimento - Manel. Oh Manel... Não reproduzo o que ouvi, porque não devo e não posso, mas foi uma das mais belas confissões que um ser humano pode ouvir. As lágrimas corriam-lhe pela face, a sua dor era mais do que evidente e o seu poema único, provando a natureza e a essência de um homem cujo valor todos reconheciam, mas com aquela beleza, amor, dedicação e reconhecimento é quase impossível de encontrar. Fiquei nervoso, constrangido, com receio de que pudesse ser descoberto. Senti que estava a mais, a ouvir uma conversa que só dizia respeito aos dois. Mas ouvi e não esqueci. É impossível esquecer tão bela conversa, única, mas que revela tudo o que um homem pode ter de bom, que nem os anjos se podem gabar...

Eu ouvi e não esqueci. Hoje recordei mais uma vez aquelas palavras lindas, sinceras, embrulhadas em lágrimas de pesar.

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Quando um homem tem Muito para dizer a outro homem, depois de morto, é porque certamente, durante as suas vidas, disseram Muito um ao outro.
(muitos serão os significados de Muito)

Catarina disse...

Por vezes fazemos parte, sem querer, de momentos íntimos de outras pessoas que nos afectam de sobremaneira como foi o caso descrito.... compreendo.