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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Gatos...

Nada melhor do que as viagens para poder analisar com mais acuidade o comportamento de certas pessoas. Muitas passam despercebidas, mas naqueles momentos, em que não há nada para fazer, exceto esperar, permite-me libertar os olhos e o pensamento para o que me rodeia. Recordo muitos episódios, mas o facto de ter escutado, involuntariamente, uma conversa, também noutro espaço rico em observações idênticas, café, fez emergir da minha memória uma senhora loura a querer provar que ainda estava nos quarenta, embora já tivessem passado mais de dez anos sobre esse período, com lacinhos cor-de-rosa no cabelo, mais apropriados para meninas da escola primária, e que se agitava pelo amplo espaço do aeroporto atrás da sua cadelinha, a qual tinha sido penteada como a dona e usava também dois lacinhos cor-de-rosa, iguaizinhos, na cabecinha. Tão parecidas que elas eram! Chamava-a com diminutivos próprios, usando uma língua áspera que, curiosamente, ficava doce sempre que se lhe dirigia. E a safada da cadelita, vaidosa como a dona, dava-se ares de menina mimada, toda coquete e atenciosa. Mas não foi só com cães que eu observei este comportamento, também vi com gatos. Estes, mais desconfiados, altivos, com tiques meio aristocráticos, chamavam a atenção; olhos, bonitos, pelo cuidado, obesidade ociosa e o estranho enroscar nas donas. Estas, habitualmente muito exuberantes, despertavam outro tipo de curiosidade devido à forma como falavam, muito alto, com nítida vontade de chamar a atenção dos demais para a peça que estavam a representar através de incomodativos monólogos com os bichos. Só tranquilizava quando os enfiavam dentro da caixinha e desapareciam pela porta de embarque. E logo gatos!
A senhora que estava sentada à minha frente, no café, anafada, revelando os efeitos das alterações hormonais próprias da idade, loira a dizer basta, e de beiços muito vermelhos, mostrava uma agitação pouco habitual, olhando ansiosamente para a porta à espera de alguém. Ao fim de algum tempo, apareceu outra senhora, de aspeto mais consentâneo com a idade e sem tanta cor, mais para o acinzentado, que, assim que se sentou, começou a ouvir da amiga, queixas e preocupações com a sua filhinha que lhe tinha dado uma noite péssima. – Vê lá tu que espirrou durante toda a santa noitinha e eu sem saber o que fazer, ainda tentei ligar ao médico mas ele não me atendeu. E a conversa era dominada pela senhora que fazia um alarido do caraças, impedindo-me de ler o jornal. Já que não me deixava ler, passei a ouvir a conversa. Mas as queixas continuavam e eu olhava para a senhora. Filhinha? Com esta idade? Só se for neta. E comecei a ter pena da noite da senhora e da pobre criança. Foi só quando ouvi que tinha conseguido falar com um amigo que tinha um amigo que era vizinho do veterinário é que fiquei a saber quem era, uma gatinha. Irra! É demais.
O neuroticismo, um conceito que engloba um vasto leque de sofrimento psíquico, tem sido detetado com mais frequência em pessoas que foram infetadas por um parasita denominado Toxoplasma gondii que necessita do intestino do gato para se reproduzir. Já há muito tempo que se sabe que os ratos infetados por este protozoário cheiram menos os gatos, não têm receio deles, passam mais vezes à sua frente e, consequentemente, são papados muito mais facilmente do que os ratos não sofredores de toxoplasmose. Uma interessante adaptação evolutiva por parte de um parasita que assegura deste modo o seu ciclo reprodutivo. O que é curioso é que contamina mais de dois mil milhões de pessoas em todo o planeta. Habitualmente não há complicações de maior na nossa espécie, exceto durante a gravidez, em que pode originar dramas preocupantes. Haverá alguma vantagem evolutiva na contaminação humana? Penso que não, porque os gatos não nos comem. Mas não deixa de ser interessante a associação revelada por vários trabalhos, sobretudo um, publicado recentemente, onde se questiona o papel da toxoplasmose na definição da cultura. Isto porque os comportamentos das pessoas poderão ser diferentes, nalguns aspetos, e influenciados pelo que se passa a nível do cérebro onde o raio do bicho se instala, ou melhor, se enquista. As alterações da personalidade são diferentes nos dois sexos. As mulheres tendem a ser mais inteligentes, mais afetuosas, mais conformadas, mais atentas aos outros, mais moralistas, entre outros aspetos, enquanto os homens se tornam menos inteligentes, com baixa autoestima, rígidos e instáveis sob o ponto de vista emocional. No entanto, ambos denotam elevada sensação de culpa, apreensão, indecisão, preocupação e ansiedade quanto ao futuro. Ainda são estudos de associação, mas começa a ser identificado alterações de neurotransmissores cerebrais provocados pela presença do parasita no cérebro e modificações operadas a nível do sistema imunológico.
Uma interessante área para pesquisa, sem qualquer sombra de dúvida. Em termos evolutivos, já não sei se não foram os gatos que, aproveitando-se do parasita que necessita do seu intestino, aprenderam a manipular os seres humanos através dele!
Seja como for, destaquei, ainda que de forma sumária, estes achados, porque da conversa havida entre a dona da gatinha e a amiga, perpassou-me pela cabeça duas interrogações; a primeira foi: - Será que a senhora tem toxoplasmas enquistados no cérebro? Quanto à segunda: - Como será o marido? Às tantas também deve sofrer...

10 comentários:

Bartolomeu disse...

O que verdadeiramente me intriga, é o motivo que levou os egípcios, ha seis mil anos atrás, a embrenharem-se na selva africana, trepar as árvores, apanhar um felino de pescoço comprido, leva-lo para casa e domestica-lo.
Bom... o mais correcto será dizer, semi-domestica-lo. Imagino que aquela rapaziada deve ter sofrido tanta dentada e arranhadela, que decidiram deixar o processo de domesticação a meio.
Mas... referi que me intriga esta egípcia decisão, porque penso: Ou existiam demasiados ratos naqueles antigos tempos. Ou, existiam demasiadas senhoras loiras, solitárias e toxoplasmadas...

Massano Cardoso disse...

Tudo aponta para o conhecimento que os egípcios tinham do apetite dos gatos pelos ratos, uma praga universal, a única espécie que compete com o homem em termos de distribuição geográfica. Depois, depois deverão ter influenciado algumas "morenas" lá do burgo...
Adoravam gatos, pintavam os seus olhos como se fossem gatas, depilavam as sobrancelhas e eram dadas a outras gatices. Não sei se a expressão "é uma gata!" virá daí! Nunca se sabe. Mas quem matasse um gato estava tramado, era morto. Também não queria deixar de referir que a Inquisição entretinha-se a queimar humanos e gatos pretos... Não tenho elementos sobre outros animais que tivessem sido sujeitos à ação da tenebrosa instituição. Se soubessem destes conhecimentos quem sabe se não poderiam invocar que estavam a impedir a mera propagação da toxoplasmose...

Catarina disse...

O texto e o diálogo (entre duas “enciclopédias” – com todo o respeito! : ) , divertiram-me. O amor, porque de amor se trata, pelos animais de estimação – os ingleses são muito mais práticos, até no nome que dão a estes animais: “pets” – short and sweet! – sempre me surpreendeu, principalmente quando se referem a estes animais como “filhos”; quantas vezes tenho ouvido: “kitty, kitty, come to mommy”, o que ainda hoje acho muito estranho.
E, sim, caro Prof, há homens e mulheres que a todo o custo se agarram a uma juventude que há muito desapareceu (não me refiro ao “espírito jovem”) mas que nem eles/elas próprios/as deram por isso! É difícil aceitar o processo de envelhecimento que continua a ser irreversível! : )

Bartolomeu disse...

Não sei se concordo com a irreversibilidade do envelhecimento, quanto muito, com a suspensão.
Vou mais pelo preconceito, ou seja, estabeleceu-se que o ser humano envelhece e a acompanhar, ou caracterizar esse envelhecimento, verificam-se a perda de algumas faculdades, físicas e intelectuais.
Sou um tanto ou quanto relutante, na aceitação generalizada dessa definição.
Se pensarmos um pouco, verificamos através de testemunhos que conhecemos, como por exemplo as gentes do campo, que esse envelhecimento e essa perda de faculdades, não é fatal ao ser humano. No campo, encontro muitíssimas pessoas que, comparativamente com os citadinos, são muito mais activos quer física, quer intelectualmente. E ainda, que são portadores de uma maior e melhor alegria de viver. Verifico o mesmo em pessoas que praticam desportos, como o ténis, a vela, o remo, o ciclismo, a esgrima, o hipismo e até no atletismo.
Se reparar, Catarina, vai constatar na próxima corrida de S. Silvestre, no grande número de participantes, na camada etária dos 60 anos, como aliás é habitual, os quais completam a prova.
;)
O envelhecimento, é um dogma de que nos foram convencendo desde pequenos. Alguns, para melhor conseguirem atingir esse desiderato, chegaram mesmo ao extremo de envelhecerem, para nos demonstrar que o processo é infalível.
;))

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

O pior, Caro Bartolomeu, é quando o envelhecimento nos retira precocemente a lucidez e a normalidade. Realmente as senhoras demasiado louras que tratam os bichos de estimação - normalmente são cadelinhas, por sinal muito feias - como o Caro Professor Massano Cardoso descreveu, revelam alguma coisa que não é muito normal. Talvez que as cadelinhas sejam uma bengala de auto-estima e de afirmação e também uma companhia contra a solidão.
Quando vejo essas senhoras com as suas cadelinhas todas muito bem vestidinhas e perfumadas fico sempre muito admirada com os pormenores, pensando cá para mim como é possível, mas acabo a sentir alguma ternura.

Bartolomeu disse...

Pois eu, não sinto ternura alguma, cara Dr. Margarida.
Vestir um cão com roupas de marca, cobri-lo de joias e perfumes, é algo que não entra no meu entendimento e demonstra uma imensa insensibilidade para reconhecer os problemas sociais de pobreza e condições de vida degradante que contrastam com essas excentricidades.
Mas, como já disse, é-me impossível entender, e se não entendo, não posso tecer considerações.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Bartolomeu
Estou completamente de acordo. Não me refiro a roupas de marca, jóias e outros luxos.
Lembro-me da cabeleireira da minha Mãe, pessoa modesta, ter uma cadelinha que circulava no cabeleireiro - nunca pisou um aeroporto - vestida com umas capas de croché e uns laçarotes na cabeça a condizer que ela própria confeccionava.

Bartolomeu disse...

Ahhh!!!
Peço que me desculpe, cara Dr. Margarida, entendi mal quando li «cadelinhas todas muito bem vestidinhas e perfumadas».
;)

luis rosario disse...

Após a leitura desta crónica e dos comentários já feitos, é caso para dizer a senhora loira nasceu com cérebro, infelizmente, porque bastava-lhe a espinhal medula, assim não seria infectada certamente pela toxoplasmose.
Mas a propósito do tema desta crónica do Profº Massano "Gatos", gostaria de deixar uma consideração que certamente esclarece a inquietação do Profº. Há duas épocas na vida: a infância e a velhice, em que a felicidade está na companhia de um animal.

luis rosario disse...

Tchim Tchim!!!