Dia de verão, andavam todos a desejá-lo para agora se queixarem. É sempre a mesma coisa, certos desejos, assim que são satisfeitos, revoltam-se contra nós, até com o tempo isso acontece. Não faz mal, porque logo que o tempo arrefeça já não nos lembramos. Voltamos ao princípio para cavalgar a espiral sem fim dos desejos. O mesmo acontece com os acontecimentos da vida. Ouvimos sempre as mesmas histórias, apenas pintadas de cores e de sons diferentes, no fundo protagonizamo-las vezes sem conta, caindo nos mesmos erros e vivendo as mesmas circunstâncias como se fosse a primeira, mas mesmo assim ainda conseguimos ficar surpreendidos com a pretensa originalidade da história.
O senhor tinha acabado de entrar. Sentou-se. Olhei-o e não quis acreditar que lhe faltasse um ano para completar meio século. Despovoado de cabelos, enfeitado de rugas profundas e distante, via-se perfeitamente querer fugir a qualquer intimidade coloquial, como se a vida não tivesse qualquer sentido. Algumas perguntas, circunstanciais, iam-me saindo, umas atrás de outras, a fim de poder despir-lhe a mente, mesmo contra a sua vontade. Não me é difícil despir as almas, mais complicado é despir os corpos, porque as almas não gostam de se sentir sozinhas, têm medo, muito medo. Assustei-me quando ouvi dizer o que andava a tomar. – Toma esses medicamentos todos? E nessas doses? Consegue trabalhar? E conduz? Disparei como se fosse uma rajada de metralhadora, tocado por algum nervosismo ante uma ameaça real. – Sim, tem de ser, mas já comecei a reduzir. – Mesmo assim! Interrompi-o. Apercebendo-se da minha preocupação e ansiedade, começou a tomar conta da situação desempenhando o papel central. Deixei-o à vontade, desejoso de conhecer o que é que andava a atormentá-lo e, também, poder, eventualmente, ajudá-lo. Deu certo, porque começou, imediatamente, a contar as suas vicissitudes. Tinha sido fiador de um velho amigo, que conhecia desde a escola primária. O banco, em face do incumprimento, saltou-lhe em cima. Ainda tentou negociar propondo uma determinada quantia mensal que fosse compatível com o seu vencimento, mas não, um dia apareceu um solicitador a penhorar os bens, depois o banco acabou por aceitar a proposta inicial, mas agora numa base de endividamento diferente, praticamente o dobro. Uma forma de usura obscena e típica destas instituições. – Desgraçaram-me, senhor doutor! Mesmo assim, reparo que o fiador ainda tenta desculpar o autor da tragédia, que, entretanto, “saiu” para África, acreditando que o “amigo” lhe irá um dia compensá-lo e justificar o seu ato. – Acredita mesmo? Perguntei-lhe. Olhou-me silenciosamente durante dois longos segundos e respondeu: - Quero acreditar que sim. Preciso acreditar! Respondi-lhe com o meu olhar. Não sei o que é que ele viu, mas foi o suficiente para dissertar sobre a sua profissão, a sua vida, a sua atividade política, outros desaires, algumas esperanças e um gosto inusitado pela leitura. Falou-me da sua biblioteca, que não vende por dinheiro nenhum, um gosto inculcado pelo seu pai, responsável em tempos por uma biblioteca itinerante. O entusiasmo tomou outra dimensão à medida que desfiava o rol de autores portugueses que chegou a conhecer, Pedro Homem de Mello, por quem nutre amor e respeito, David Mourão-Ferreira, Amália Rodrigues, que visitou várias vezes, e muitos outros, graças ao pai. Explicou-me, então, que tinha ido para carteiro por necessidade, mas hoje não era capaz de a abandonar, “adoro a minha profissão”. Via-se perfeitamente o seu contentamento, em perfeito contraste com a desconfiança ou a indiferença inicial. Apesar de ter apercebido que tinha esgotado há muito o tempo destinado a três consultas, pelo menos, deixei-o espraiar-se à vontade. Há certos momentos em que o tempo deixa de existir. Este foi um deles. Falei pouco, o suficiente, apenas uma ou outra palavra ou uma curta frase para atiçar o fogo da lareira cultural, como se houvesse necessidade disso. No final o senhor presenteou-me com um CD de música de um filho, em que a maioria das letras são da sua autoria, sob pseudónimo. Chamou-me a atenção para o título de uma, “A cor do vento”, inspirada numa história de Sinatra, quando em Itália, há alguns anos, após uma atuação para crianças cegas, uma delas, no final, lhe perguntou: - De que cor é o vento, Sinatra? “É da cor de tudo”, respondeu o carteiro no seu poema. – Obrigado por me ter ouvido tão pacientemente. – Eu é que lhe agradeço.
No dia seguinte, à noite, após o jantar, fui tomar o meu “descafeinado” ao café/livraria, Olho para o escaparate e vi uma obra de David Mourão-Ferreira, “As quatro estações”. Adquiri-o influenciado pela história da véspera. Depois de ter lido o primeiro conto, fabuloso, tive que escrevinhar este texto, numa noite particularmente quente, mas não me queixo do calor e muito menos me arrependo de satisfazer um desejo...
2 comentários:
Lindo!, adorei.
Caro Professor Massano Cardoso
Uma conversa amiga, a possibilidade de falar e de exprimir sentimentos, quantas vezes não é bem mais curativa do que um monte de medicamentos?
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