Li uma notícia que me divertiu e que parece ter incomodado as mais altas individualidades do país. No decurso da abertura do Ano Judicial o bastonário da Ordem dos Advogados terminou a sua intervenção com o famoso poema de Ary dos Santos, "Poeta castrado, não!", trocando "poeta" por "advogado". Imagino o efeito produzido naquela sala onde nos é dado a contemplar o formalismo na sua pureza, pelo menos é essa a minha perceção.
Estou convencido de que ficará nos anais da justiça portuguesa, pela forma e pelo conteúdo das suas afirmações. Não me pronuncio sobre as suas intervenções, que começam a ser previsíveis em termos de provocação e frontalidade. É o seu estilo, cultiva-o, é facilmente compreendido e consegue passar as mensagens com muita facilidade, uma verdadeira arte de comunicar. Podemos ou não concordar com ele, mas há algo que não se lhe pode negar, revela sinceridade e espontaneidade, e tem arcaboiço mais do que suficiente para suportar quaisquer críticas. Imagino o efeito produzido naquele cinzentismo solene.
O "advogado castrado, não!" levou-me aos "castrati", aqueles meninos que até ao século XIX sofreram castração cirúrgica para manterem a voz de sopranos que faziam as delícias dos coros religiosos. Atingiram o auge durante o período do Barroco. Por volta dos oito a doze anos eram-lhes retirados os testículos, invocando qualquer condição que os justificasse, nomeadamente hérnias inguinais, como se fosse necessário retirá-los por causa disso! O resultado final era espetacular, já que ficavam com uma voz mista de timbre masculino e feminino, em que à potência do primeiro se juntava a capacidade de gerar agudos como se fossem mulheres. Dizem que era a forma de procurar vozes celestiais, que inebriavam o público de então, tanto ou mais do que as celebridades musicais dos tempos modernos. Graças às mudanças sociais, as mulheres começaram a fazer parte dos coros impedindo a continuação de uma prática inumana. Valha-nos as mulheres!
A prática da castração nunca foi oficializada, porque era mais do que evidente um atentado à dignidade humana, mas a volúpia de alguns, casos dos eclesiásticos, que a meu ver agrava a falta de ética, originou um fenómeno que não devemos esquecer.
No mesmo dia em que tive conhecimento da declamação do poema de Ary pelo bastonário, fui contemplado, por mera causalidade, com um uma canção, "Ave Maria", cantada pelo último "castrato", Alessandro Moreschi, gravada no início do século XX. É a única voz que se conhece de um "castrato". Estive a ouvi-la. Repeti a audição várias vezes, e, de facto, há algo de "angélico" naquela voz. Arrepiante, mesmo. Imagino o que deverão ter sentido os que ouviram as vozes emanadas a partir deste grupo de pessoas, aos quais foram praticados atos repugnantes em nome do simples prazer.
Voltando ao tema castração, importa dizer que se a extirpação dos testículos provocava aquele timbre de voz, nem sempre provocava impotência, ou seja, se fosse realizada depois dos dez anos, conseguiam desenvolver um pénis adulto conseguindo algo impensável, "serem os melhores amantes do mundo", uma curiosidade que merece ser realçada, para "limitar os estragos de algumas castrações". Não podiam ter filhos, como foi o caso de Alessandro Moreschi, o "Anjo de Roma", que foi pai adotivo, mas podiam ser os "melhores amantes do mundo".
Não sei se Ary se referia à castração como a impossibilidade de ser pai ou de usar devidamente o "instrumento", mas, tal como referi, alguns até o utilizavam, e sem riscos de procriação indevida.
Vá lá, para terminar, tenho que admitir a castração, não a de humanos, não a psicológica, não a social, não a política, mas a dos capões. Isso sim, vale a pena, porque ficam mesmo mais saborosos...
6 comentários:
Este bastonário é um homem frontal.
Professor Massano Cardoso, no seu melhor estilo.
A minha vénia "de profundis" «Pain, unlike pleasure, wears no mask» escreveu Wilde, to his boy-friend, enquanto esteve de choça.
;)))
Maravilha de texto. Fui ouvir o "Ave Maria" cantada pelo último castrato, a gravação é péssima mas dá para perceber uma voz singular, direi estranha a confirmar o que o caro professor diz. http://www.youtube.com/watch?v=lmI_C-S0Abg
Enfim uma época de gostos estranhos.
Já quanto ao bastonário,reconheço
que não há ali sombra de castração, o homem está sempre no ringue, subsiste-me no entanto a dúvida se aquilo é genuíno ou faz parte de um estilo algo conturbado, inconformado com a realidade, ou ainda se é uma máscara para chegar mais longe... Não sei, nem interessa nada!.
Também a propósito do início do ano judicial, é pá, acabem lá com essa fantochada, acordem (como cantava a outra!), não façam de palhacinhos sem lhes pedirem, todos os anos a mesma coisa, haja santa paciência! E depois porquê este evento? Imaginem agora o início do ano das artes, das ciências sei lá mais quê! Irra, não coiso que aguente estas figurinhas revivalistas...
http://www.youtube.com/watch?v=2bosouX_d8Y
Caro Professor,
Esta sua ode aos "castrati" fez-me recordar outro grupo socialmente marginal, os "malcontenti", evocados em famosa rua de Florença.
Tantos deles, "malcontenti", inocentes condenados à penas capital...bem mais infelizes que os "castrati", vítimas deste mundo cão em que vivemos!
Caro amigo Tavares Moreira
Estive apenas uma vez em Florença, há muitos anos, 32. Consigo reter muitos aspetos de tão bela e encantadora cidade, o que não é muito difícil, atendendo a tanta beleza que quase julguei poder vir a sofrer da síndroma de Stendhal. Desconhecia essa rua, e o seu significado, mas arrepiei-me depois de saber a quem foi dedicada. Em consequência, obrigou-me, nesta noite de sábado que tenho de prolongar pela madrugada, a pensar num episódio da mais pura e absurda maldade humana que já abordei aqui, no 4R, há quase sete anos, “Capela da Casa Grande” (http://quartarepublica.blogspot.pt/search?q=capela+da+casa+grande) a propósito da escravatura.
Transcrevo uma pequena parte. (...)“Há muitos anos, tive a oportunidade de visitar o museu da escravatura em Luanda. Num pequeno morro, a “Capela da Casa Grande” encerrava com muita simplicidade vários testemunhos daqueles tempos. Gravuras, utensílios diversos, instrumentos de tortura, haveres de velhos escravos, preenchiam aquele espaço, sobranceiro a uma planície de águas tranquilas onde os barcos negreiros iam colher os negros. Era naquele ponto que os concentravam antes de embarcarem para a América, nomeadamente, o Brasil. Foram dezenas, ou melhor, centenas de milhar, os que viram pela última vez a sua terra. A zona, bela e silenciosa, não era suficiente para limpar as alvas paredes do edifício, impregnadas de dores e sofrimentos, facto que eu interpretei como responsável por um crescendo mal-estar que ia sentindo. Roubavam os corpos à África, mas também, antes de os despejarem nos porões dos navios, os despojavam da sua essência ao batizarem-nos à força. Escravos sim, mas cristãos! (...)
A particularidade e a similitude com a rua dos “Malcontenti”, está em que estes, os condenados, saíam por uma porta para a forca depois de saírem da capela onde recebiam os últimos sacramentos. Em Luanda, saíam da capela, batizados, por uma porta para os barcos negreiros.
Concordo consigo, "mundo cão"
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