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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

"Indiferente ao mundo"

Deitado. Olhos fechados, boca semiaberta, indiferente ao mundo. Pergunta, que horas são? São seis horas. Da manhã? Não, da tarde. Emudeceu. Pede-me incessantemente para libertar as mãos. Explico-lhe que não pode e digo os motivos. Aparentemente aceita. Pede-me para mover os braços. Esfrego-lhe o braço esquerdo. Agora, o direito. Põe o braço direito, diz. Esfrego durante alguns segundos. Agora o outro, põe o braço direito. Esfrego-o durante alguns segundos. Pronto. Sento-me e olho para a sua expressão como se estivesse na antecâmara do esquecimento. Agora atrás. Atrás? Esfrego-lhe durante breves segundos as costas. Pronto. Está bem. O som é baixo, lento, despegado, embora se sinta alguma ansiedade na sonolência verbal. Quer protestar, e protesta. Contra-argumento conforme posso, invocando razões que seriam liminarmente destruídas de imediato há três dias. Protesta. Falta-lhe forças, mas não lhe falta vontade e algum discernimento. Tudo se desvanece num arrastar doloroso, e assume uma aparente passividade que me incomoda. Pede-me sempre a mesma coisa. Estou preso, tira-me isto. Liberta-me. Não posso, e explico de forma quase infantil as razões, razões que não engole. Pede uma, duas, várias vezes. Levanto-me e massajo-lhe os braços e as costas. Poucos segundos depois diz, está bem. Pronto. Acabo de me sentar. Pede-me novamente para por o braço direito. Levanto-me e repito a manobra com uma suave massagem. Perdi o conto às vezes que me pediu. Perdi o conto às vezes que fiz. Tudo feito com olhos fechados e boca semiaberta como se estivesse a saborear algo que eu não vejo. Há um desejo de libertação, estranho, já vi muitas vezes este desejo. Olho-o e recordo o discurso fluente e contundente de há poucos dias. Um contraste que dói, uma queda que espanta, mesmo para quem tem experiências nestas andanças. Os sinais de bonança estão à minha frente. O fim da tempestade da vida aproxima-se de uma forma calma, rápida e surpreendentemente aflitiva para quem o conhece. Olho e vejo tudo, o passado dele e o meu futuro. Tudo tem um fim, por vezes demora, outras não, outras incomoda. Ele sabe que o fim está à distância de um pensamento e de um desejo. A cabeça, mesmo atordoada pela doença, teima em querer espreitar, ver, ouvir e sentir o fim. Deitado. Olhos fechados, boca semiaberta, indiferente ao mundo, espera. Eu também.eitado. Olhos fechados, boca semiaberta, indiferente ao mundo. Pergunta, que horas são? São seis horas. Da manhã? Não, da tarde. Emudeceu. Pede-me incessantemente para libertar as mãos. Explico-lhe que não pode e digo os motivos. Aparentemente aceita. Pede-me para mover os braços. Esfrego-lhe o braço esquerdo. Agora, o direito. Põe o braço direito, diz. Esfrego durante alguns segundos. Agora o outro, põe o braço direito. Esfrego-o durante alguns segundos. Pronto. Sento-me e olho para a sua expressão como se estivesse na antecâmara do esquecimento. Agora atrás. Atrás? Esfrego-lhe durante breves segundos as costas. Pronto. Está bem. O som é baixo, lento, despegado, embora se sinta alguma ansiedade na sonolência verbal. Quer protestar, e protesta. Contra-argumento conforme posso, invocando razões que seriam liminarmente destruídas de imediato há três dias. Protesta. Falta-lhe forças, mas não lhe falta vontade e algum discernimento. Tudo se desvanece num arrastar doloroso, e assume uma aparente passividade que me incomoda. Pede-me sempre a mesma coisa. Estou preso, tira-me isto. Liberta-me. Não posso, e explico de forma quase infantil as razões, razões que não engole. Pede uma, duas, várias vezes. Levanto-me e massajo-lhe os braços e as costas. Poucos segundos depois diz, está bem. Pronto. Acabo de me sentar. Pede-me novamente para por o braço direito. Levanto-me e repito a manobra com uma suave massagem. Perdi o conto às vezes que me pediu. Perdi o conto às vezes que fiz. Tudo feito com olhos fechados e boca semiaberta como se estivesse a saborear algo que eu não vejo. Há um desejo de libertação, estranho, já vi muitas vezes este desejo. Olho-o e recordo o discurso fluente e contundente de há poucos dias. Um contraste que dói, uma queda que espanta, mesmo para quem tem experiências nestas andanças. Os sinais de bonança estão à minha frente. O fim da tempestade da vida aproxima-se de uma forma calma, rápida e surpreendentemente aflitiva para quem o conhece. Olho e vejo tudo, o passado dele e o meu futuro. Tudo tem um fim, por vezes demora, outras não, outras incomoda. Ele sabe que o fim está à distância de um pensamento e de um desejo. A cabeça, mesmo atordoada pela doença, teima em querer espreitar, ver, ouvir e sentir o fim. Deitado. Olhos fechados, boca semiaberta, indiferente ao mundo, espera. Eu também.
Isto foi ontem. Hoje já não espera, não vê, não ouve e não sente, apenas finge que vive, mas não sabe. Eu não, eu sei, eu vivo, eu vejo, eu ouço, eu sinto e continuo à espera...

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Somos seres tão frágeis mas paradoxalmente, porque animados de uma energia de que desconhecemos a verdadeira potencia e duração, tão resistentes aos revezes que somos obrigados a enfrentar...

luis barreiro disse...

Ainda bem que vivemos numa sociedade que década a década tem diminuído (e muito) as amarras da doença e aumentado significamente a esperança de vida.
Julgo que o sentimento que tive ao ler o seu texto (trouxe a memória de 1 ano em que infelizmente vi o meu sogro partir), daqui a 3-4 décadas será algo apenas da história.
Conseguirmos vencer esse sentimento de impotência será o maior feito da humanidade, só possível porque acreditamos que no amanhã o copo está meio cheio.