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terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Mouquice

A agressão auditiva começa a ser um problema muito grave a diferentes níveis, laboral, ambiental e lúdico ao ponto de estarmos a originar o aparecimento de uma geração de surdos. Apesar de todas as medidas legislativas em vigor, as quais nem sempre são devidamente respeitadas, não se consegue evitar um fenómeno para o qual o envelhecimento é uma das principais causas. O pior é que a presbiacusia que, habitualmente, começa a manifestar-se aos 65 anos, tem tendência para aparecer cada vez mais cedo, prevendo-se que no futuro se inicie aos 35 anos. Atendendo a que vamos viver cada vez mais é provável que a partir dos 50 anos sejamos cerceados de tão extraordinária faculdade. No dia a dia já é possível verificar este fenómeno, obrigando muitos a “berrar” para que possam atingir um nível mínimo de entendimento.
Não sei se os novos modos de falar, tomando como exemplo o que ocorre nos cafés, é devido a este fenómeno ou a puro exibicionismo. É irritante ter que gramar com as conversas dos vizinhos do lado que não se coíbem de pormenores e detalhes que bem dispensaríamos, apesar do caricato de algumas.
Falar baixo começa a ser complicado. A audição vai-se perdendo, o ruído ambiental vai aumentando, as boas maneiras desaparecem e, consequentemente, berra-se! Mas há ainda zonas e populações do globo em que isto não acontece. Os mabaans, uma tribo do Sudão, que habitam uma zona cercada pelo deserto, apresentam a mais baixa taxa de surdez do mundo e falam muito baixo. Os únicos sons que se produzem por aquelas bandas são os naturais.
Ouvir os sons da natureza, sem qualquer contaminação de origem humana é muito raro e uma experiência única. Recordo-me de duas situações em que experimentei essa encantadora e estranha percepção.
Há alguns anos, na sequência de uma participação em provas académicas, hospedaram-me no Convento da Mitra, nos arredores de Évora, numa simpática e acolhedora cela transformada em quarto. Isolado, tive a oportunidade de ouvir sons desprovidos de contaminação humana e até de um período nocturno em que o silêncio total se podia ouvir em toda a plenitude. Uma sensação agradável que me levou a congeminar quão sábios tinham sido os construtores e habitantes daquele espaço. A outra foi nos arredores de Luanda onde me levaram para ver uma paisagem única, o Miradouro da Lua. Quadro deslumbrante pintado de sons naturais. Já não sei o que mais me impressionou se a beleza visual ou auditiva. As duas muito provavelmente. Ambas as experiências foram mais do que suficientes para dar um outro significado a tão importante sentido.
Os ruídos que nos agridem são cada vez mais comuns, indo das explosões sonoras dos intervalos publicitários televisivos, passando pelo tráfego automóvel, uso de “fones” e discotecas, até à actividade profissional. Claro que há outros tipos de ruído que, embora não esteja comprovado que possam provocar surdez, não deixam de ser perturbantes e causar mal à saúde. Os seus autores já devem sofrer de presbiacusia precoce, magníficos exemplares da tal “geração de surdos”, e, naturalmente, não se devem aperceber dos prejuízos causados. Só assim se compreende que as manifestações, os protestos e as palavras de ordem de muitos cidadãos, falando da problemática da saúde, por exemplo, não consigam estimular as células responsáveis pela audição. Já devem ser poucas, muito poucas, nem mesmo berrando! A mouquice patológica é muito triste, mas a mouquice política não lhe fica atrás...

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Ora viva, caro Professor Massano Cardoso!
Eis um verdadeiro e simpático desejo para o ano que se inicia. "Felicidades e que nos livre o Altíssimo, dos moucos que não desejam ouvir"
Aumentam, é verdade, caro Professor e, arrastam atrás da sua mouquice, quantos se lhes desejam igualar. Ha pouco tempo, falta de capacidade auditiva, gerava isolamento, hoje, é sinal de elitismo. Um elitismo autista, mesmo entre pares, mas, referência para quem ilusóriamente crê possuir o dom superlativo de entender e se fazer compreender por meias palavras.
Deixo aqui este clip do Rui Veloso "A gente não lê", apesar de apreciar o autor, preferia a versão interpretada por Isabel Silvestre, mas não está no You tube.
http://youtube.com/watch?v=bqMvwxsey8g
E ainda, uma pequenina história, passada com o Bartolomeu, quando foi convidado para passar um fim de semana na antiga aldeia da Luz (antes de estar submersa).
Chegámos pelo meio da tarde, era verão e o calor fazia-se sentir, deixámos as poucas bagagens e seguimos para espanha, Vila Nueva del Fresno, rever amigos do meu amigo. Aqueles espanhois são danados para a conversa, os petiscos e a cerveja, depois de satisfeita a conversa e a sede, voltámos para a Luz, desta feita, tornava-se imperativo rever os amigos da aldeia. Mais petiscos, mais cerveja e de seguida o excelente vinho da região. Seriam umas 10 horas da noite, quando voltámos a casa dele para jantar. Tinhamos à nossa espera e, "só para fazer boquinha" um queijinho de cabra curado, um chouriço caseiro e novamente o vinho da região, a seguir à "boquinha", servem-me uma sopa de feijão com hortaliça e pedaços de carne de porco e enchidos, quase um cosido à portuguesa. Comecei a ficar preocupado. Peço desculpa, mas... sirva-me pouco... sabe... já comi mais do que estou habituado e depois... sopa de feijão à noite...
Ah pode comer sem cuidado, que isto não lhe faz mal nenhum, vai ver que gosta.
Efectivamente, era uma sopa de um sabor divinal, temperada com umas ervas que lhe conferiam um sabor especial. Estáva tão boa que repeti, pelo que fui brindado com um sorriso de satisfação pela mãe do meu amigo.
Terminada a sopa, vem para a mesa um cabrito assado no forno da lenha, com umas batatinhas e legumes. Os olhos saltaram-me das orbitas, mas a razão clamou! Bartolomeu, tem juizo, não te esqueças que és menino da cidade e não estás treinado para estas cavalgadas.
Mas o cabrito enchia o ambiente de aroma hipnóticamente irresistível e, deixei que me servissem, não deixando porem de num gesto semi-vago pedir para servirem pouco.
Bahh, não me ouviram. Colocaram no meu prato o que lhes apeteceu e eu, já rendido, empenhei-me em satisfazer-lhes a gula de me empanturrarem.
Rematámos com um leite-creme queimado. Seria uma meia noite quando voltámos a sair de casa, desta vez para tomar um café. Mas o safado (o café) não veio sózinho, fez-se acompanhar de um generoso balão de agua-ardente velha. Pois que seja, assim como assim...
Voltámos para dormir, umas 2 horas depois. O corpo já pedia cama sem cessar. Combinámos coisas para o dia seguinte e fechei-me no quarto que me destinaram, não demorei 2 minutos a adormecer, mas no sub-consciente tinha ficado a dúvida se iria acordar no dia seguinte. A verdade é que, fisicamente, sentia-me excepcionalmente bem, mas a consciência, fazia-me sentir a sua desaprovação pelos excessos cometidos.
Não sei que horas seriam, quando essa consciência me acordou,só sei que estáva de papo para o ar e não ouvia o mínimo ruído, silêncio absoluto, o que me fez pensar que hipotéticamente estaria morto. Ainda fiz um ruido com a garganta para me tentar certificar se estaria ou não, mas imediatamente pensei: Bom, se realmente bati a caçoleta, a "coisa" até é agradável, portanto, voltemo-nos de lado e continuemos... para bingo! E de novo adormeci, feito um anjo, acordando efectivamente já a manhã ia ligeiramente adiantada, mas muitíssimo bem disposto.

invisivel disse...

Caro Professor Massano Cardoso:

Belo texto (aliás como todos), que nos conduz a apreciar a “calma” da Natureza, depois de passarmos pelo rock e por todos os fenómenos que nos destroem o aparelho auditivo…
Curiosamente, um dos ruídos que mais me “enerva” (talvez por me entrar portas adentro sem convite), é a pausa das Tvs.s para a publicidade. Por mais voltas que dê, não consigo entender o porquê do som aumentar daquela maneira! Se a ideia é chamar atenção para o “produto”, acho que no meu caso tem o efeito contrário…
Para concluir, quero dizer-lhe: excelente texto com um final brilhante, e que durante muitos mais anos, nos presenteia com a sua escrita…