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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Ouvir em silêncio...

Há dias em que as nossas vivências nos fazem sentir muito pequeninos e vulneráveis.
Logo de manhã, ao ler as notícias, sou confrontado com um merecido elogio fúnebre de um sinistrado do trabalho que conheci muito bem e com o qual participei em várias reuniões, simpósios, cursos e outras actividades no âmbito da Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho. Uma pessoa humilde, mas dotada de uma força e forma de estar que faz inveja a qualquer um. Um verdadeiro activista naquilo que esta designação tem de mais nobre. Tinha morrido há pouco tempo de acidente e eu não soube. Fiquei muito triste.
Estava a preparar-me para sair de casa quando ouço os gritos de dor de um cão à minha porta. Apercebi-me que tinha acontecido algo à minha velha cadela. Foi atropelada no passeio por um carro que subia a rampa para a estrada. Corri esperando o pior e vejo o animal debaixo do pára choques do carro sem se poder mexer. Pedi ao senhor que recuasse e levei-a para casa para a examinar. Tremia e gemia com dores e não conseguia poisar a pata dianteira. Fiz algumas manobras e apercebi-me que talvez tudo não passasse de contusões mas acabei por a levar ao veterinário. Em princípio tudo vai correr bem. A Boneca, que já está muito velha - vai fazer 18 anos – sofre de cataratas e de surdez, não se desviou do veículo, mas é uma grande companheira e amiga. Preocupa-me o comportamento de alguns condutores daqueles prédios que habitualmente se lançam pela rampa sem os cuidados necessários. Senti uns frémitos muito difíceis de explicar ao ouvir aqueles gritos de sofrimento.
Mas o dia não ficou por aqui. De manhã, ainda observei alguns trabalhadores. Houve dois que me chamaram particularmente a atenção, um homem e uma mulher a entrarem na casa dos cinquentas. O primeiro apresentava um conjunto de alterações, as quais me levou a questioná-lo por que razão não as tratava devido aos riscos que comportavam. Respondeu-me que havia coisas piores. Recostei-me. Senti que o homem queria desabafar. Contou-me o falecimento por doença maligna da sua esposa há poucas semanas. Descreveu o caso de uma forma dolorosa e das dificuldades que ele e os filhos estavam a passar. Ouvi. Ouvi em silêncio. Eu sei que as pessoas nestas circunstâncias gostam que as ouçam. A seguir, entra uma senhora com um gorro antiquado e um ar meio confuso. Vinha fazer um exame de medicina do trabalho depois de ter estado de baixa durante mais de trinta dias, como manda a lei. Perguntei-lhe, naturalmente, o que é que lhe tinha acontecido. Respondeu-me: - Fui operada a um tumor do estômago e agora ando a fazer quimioterapia. Enquanto me relatava o acontecido entregou-me os relatórios e exames. Verifiquei que o último hemograma apresentava uma anemia muito grave. Explicou-me que já tinha levado uma transfusão para aguentar o próximo ciclo. - E quer ir trabalhar? - Quero, Senhor Doutor! Enquanto estou a trabalhar não penso na doença e sinto-me útil. Os meus colegas são excepcionais. – Muito bem! Dei um parecer adequado às circunstâncias. Mas vi, que a senhora queria falar. É fácil fazer falar uma doente nestas circunstâncias. E falou. Falou dos filhos, de si, da família, dos amigos, do futuro e da luta que tinha pela frente. Ouvi. Ouvi, usando um velho e cúmplice silêncio que os doentes gostam de sentir, talvez porque não se utiliza lugares comuns ou coisas banais. O silêncio e o olhar para as pessoas transmite respeito, compreensão, solidariedade e amor.
Depois do almoço, apareceu-me uma doente que tinha faltado na semana anterior. Senhora de alguma idade, simples, muito simples, entrou a pedir desculpa por não ter vindo. Disse-lhe que não tinha qualquer importância. Mas depressa explicou a razão. A filha de 46 anos que estava internada no IPO tinha falecido. Eu já sabia da história, não da morte, mas da doença. Falou com desenvoltura, explicando alguns pormenores sem querer demonstrar emoções. Pensei: - Daqui a pouco vais começar a chorar. É impossível manter a postura por mais tempo. E assim foi. Depois, permiti, muito naturalmente, dar-lhe todo o tempo do mundo para falar, para desabafar, para contar. Ouvi. Ouvi em silêncio, não deixando de a olhar. Ainda vi uma senhora de oitenta e muitos anos cujo marido faleceu há poucas semanas e que tinha a esperança de vir a comemorar os setenta anos de casados. Ouvi. Mais uma vez ouvi em silêncio e a senhora saiu muito agradecida e mais confortada.
Por que é que eu conto tudo isto? Porque também tenho necessidade que me ouçam, mesmo que seja em silêncio..
Obrigado.

12 comentários:

LV disse...

Em defesa de Vila Viçosa, a Princesa do Alentejo.

http://laranjavicosa.blogspot.com/2008/01/vila-viosa-aplaude-sada-da-ministra-da.html

lenor disse...

Essa necessidade de que nos ouçam e de nos ouvirmos, é isso, existe.

PA disse...

"Por que é que eu conto tudo isto? Porque também tenho necessidade que me ouçam, mesmo que seja em silêncio.."

Estou aqui.
Incondicionalmente ...

Boa Noite, Professor Salvador.

João Melo disse...

CÁ estamos professor Massano.abraço

Bartolomeu disse...

Diz-se, acompanhando a homilia "ouvimos Senhor".
É fundamental saber e poder ouvir.
Aquilo que entendo do que nos diz, caro professor Massano Cardoso, é que no final sente uma imensa impotência por não ter ao seu alcance outra forma de minorar o sofrimento de alma dos seus doentes, que não seja ouvi-los e oferecer-lhes a sua solideriade.
Contudo, esse seu sentido e disponibilidade, conseguem ser a necessária panaceia, que lhe permite encontrar dentro de si a força e lucidez necessárias para os continuar a ouvir, com a a tenção que necessitam e que lhe merecem.
É essa também a funcção de um médico com "M" grande.
No entanto caro professor e se me permite, deixo-lhe um conselho, não se deixe apanhar pela pieguice, os doentes precisam de si, espiritualmente forte!
;))

Anónimo disse...

Sempre atentos, meu caro Professor.
Até por uma razão egoísta: somo s nós, ouvintes, os beneficiários.

Suzana Toscano disse...

Caro amigo, já é raro haver um médico que tenha tempo e vontade de ouvir os doentes. Só isso, ouvi-los, sem ar distraído, sem ar de enfado, sem estar a escrevinhar ao mesmo tempo.Mas é claro que só funciona se houver essa "transmissão" de forças, essa corrente que alimenta a bateria mais fraca e lhe renova o ânimo, por isso o "ouvinte" fica cansado, não está só a ouvir, está a acumular , a sentir compaixão ou a preocupar-se com o que ouve.Cá estaremos para o ouvir, sempre, e seremos sempre nós a ganhar com isso...

invisivel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
invisivel disse...

Caro Professor Massano Cardoso:
Enquanto leio este seu texto ocorre-me de imediato o quanto é importante para todos nós sabermos de que, neste tempo que corre de forma vertiginosa e em que se sobrevalorizam demasiado os bens materiais, alguém "perde" tempo a ouvir em silêncio, a gente anónima que sofre.
Permita-me que lhe diga caro Prof.: a nobreza do seu carácter está de acordo com a nobreza da profissão que exerce.
Estou sempre aqui para o ouvir, em silêncio, porque me faz sentir e ver que afinal ainda há pessoas dispostas a ouvir-me...
Obrigado.

P.S:
As melhoras para a Boneca!

MC disse...

Também o ouvi, Sr. Dr.. E agradeço-lhe quer pelo que se dispõe a ouvir, quer pelo que se dispõe a dizer, isto é, a partilhar, mesmo com quem não conhece.
Nesta vida, e nesta Sociedade, perdemos demasiado tempo, às vezes, a qualificar. Se calhar deveriamos começar a ouvir mais, e a sentir muito mais.

CCz disse...

Caro Professor Massano Cardoso:
Obrigado...

Suzana Toscano disse...

O caro Invisível lebrou muito bem, as melhoras para a Boneca, esperamos que tenha sido só um susto!