Ainda hoje recordo com nostalgia os momentos das férias, que aspirava ansiosamente, não para descansar, porque energia era coisa que não faltava na altura, mas para desfrutar mais à vontade as brincadeiras e as festividades que os embrulhavam. Quantas recordações desses tempos me acariciam o pensamento.
Mas não se pense que não tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se, momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”. Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primeiro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfregavam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito. Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujidade, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma moeda.
No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, rodeado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta a avisar a chegada, corríamos todos para a sala. Entrava o puto a ribombar o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais. Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o envelope e enfiar mais um copo a tantos outros, ao ponto de não dizer coisa com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá, blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfado e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Páscoa seguinte.
A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei, mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças prontas a serem vividas.
Está mais escuro, sujo, até mais magro e um pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios, meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não ficaram por contar...
Mas não se pense que não tinha de dar, também, o meu contributo para as festividades. Dava, e com muito gosto. Nessas alturas, a turbulência infantil desligava-se, momentaneamente, quando era encarregado de limpar com cuidado um Cristo de marfim, que vinha do antigamente. Limpar o Cristo não era a mesma coisa que limpar as pratas com o “coração limpa metais”. Tinha que ser feito com o coração e o máximo de respeito. A minha avó, na altura da Páscoa, encarregava-me dessa tarefa. Em primeiro lugar retirava o pó, e, depois, com um pano embebido em água dava-lhe o tradicional banho, olhando sempre para a face, tentando observar se não estaria a incomodá-lo, porque quando me esfregavam a fuça, faltava-me sempre o ar, e eu não queria problemas. O olhar do Cristo era forte, não revelava propriamente sofrimento, mas intimidava, impunha respeito, era como se fosse um rei e era bonito. Ao longo dos braços compridos viam-se as veias, coisa que eu nunca tinha visto em mais nenhum, e imaginava o sangue a correr. Também não tinha as chagas, o marfim é duro. Por mais voltas que lhe desse não conseguia retirar aquele amarelo, nalguns pontos a descair para o torrado, mas, apesar de tudo, ficava com outro aspeto, sobretudo quando o expunha ao sol a” secar”. O amarelo, que parecia ser sujidade, passava a brilhar de forma dourada a responder ao sol na mesma moeda.
No domingo de Páscoa ficava na mesa, no meio da sala, rodeado de tudo quanto era bom, à espera do compasso. Aos pés, numa salva de prata, um envelope com dinheiro. Quando ouvíamos a sineta a avisar a chegada, corríamos todos para a sala. Entrava o puto a ribombar o sino, e a repetir a ladainha da ocasião, acompanhado pelos demais. Será que este ano alguém irá reparar no Cristo e dizer ao menos que é bonito? Era a pergunta que colocava sempre, porque o Cristo que nos davam a beijar era frio, de metal, uma imitação que não chegava aos calcanhares do “meu”. Mas não, nunca disseram nada. O homem da pasta de cabedal só se preocupava com duas coisas, recolher o envelope e enfiar mais um copo a tantos outros, ao ponto de não dizer coisa com coisa, nem olhava para o Cristo, e mesmo se olhasse devia vê-lo a duplicar ou a triplicar e muito embaciado; os outros despachavam-se fazendo deslocar o metal debaixo dos nossos olhos e bocas, mas mesmo assim ainda tinha tempo para ver que não tinha a categoria do rei da mesa. Esse sim é que merecia ser beijado. O padre, blá, blá, blá, corado, testa cheia de suor, espalhava a água benta por cima dos bolos e guloseimas sem se aperceber do Cristo de marfim, com enfado e desejoso de se ir embora. O pessoal acompanhante aproveitava o momento para enfardar novamente as suas panças de gula pascal, e eu ficava, mais uma vez, aborrecido por ninguém ter dito nada sobre o Cristo. No final do dia, colocava-o no seu poiso, a aguardar a Páscoa seguinte.
A vida roda e nunca mais soube dele. Acontece que há algumas semanas vi-o em casa de um familiar. Foi o suficiente para recordar numa fração de segundos tantos episódios. Não o cobicei, mas uma sensação de vazio foi-se construindo dentro de mim, sem me aperceber, até que, por uma mera casualidade, acabou por cair em minhas mãos, preenchendo esse espaço repleto de lembranças prontas a serem vividas.
Está mais escuro, sujo, até mais magro e um pouco triste, embora não tenha perdido aquele ar de rei, de senhor, e continua detentor de uma beleza que as imitações não conseguem atingir, as próprias veias dos seus longos braços deixam transparecer o sangue a circular; é quente, não é frio, mas está a precisar de um bom banho, tomara, há decénios que ninguém o limpa como eu fazia. Sei que não é Páscoa, estamos no Natal, mas é um bom momento para o fazer. Daqui a uns dias já deverá estar mais composto, com outro aspeto, mais alegre e, decerto, mortinho para reviver alguns episódios, meus, porque com a idade que tem quantas e quantas histórias não ficaram por contar...
4 comentários:
Após tantos textos e tantas leituras desses textos escritos por si, caro Professor e Amigo, começo a sentir a confusão de não saber, de qual eu gosto mais.
Este, é realmente o melhor, não posso duvidar que o seja.
Porque, como muitos outros fala.
Fala de si e do seu olhar, da forma como sente e como intreperta o mundo que o rodeia e, da forma como o transmite.
Esta, clara, directa e isenta, recordou-me uma crítica de Saramago, relativamente ao seu livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Nessa crítica, Saramago refere a figura humanizada de Jesus, como Homem concebido a partir da relação sexual entre Maria e José, num ambiente "especial", a qual pela forma como se relacionou com os povos e o mundo, no fundo lhe é grata. E O seu Cristo, caro Professor? Quem o terá concebido?
Onde terá o escultor do Cristo de marfim, ido buscar a inspiração, a visão que lhe conduziram a mão e o cinzel que transformaram o pedaço de marfim, que antes terá sido um dente de elefante, ou... uma barba de baleia, nessa imagem tão bela e tão expressiva a que(m) o menino Salvador, deu, carinhosa e respeitosamente banho, durante tantos anos?
;)
Um grande Abraço, meu Caro Amigo!
E agora, caro amigo Professor, aposto que serão os seus netos a dar banho á bela e nostálgica escultura sob os seus olhos atentos, ternos e vigilantes.
Belo texto, caro Professor.
Lindo texto, como sempre, subscrevo o que diz o caro Bartolomeu, quanto à dificuldade da escolha. O garoto de então fixou quanto é importante repararmos nos pequenos gestos dos outros, sentiu-se triste porque ninguém reparava no trabalho que tinha tido e no seu contributo para que tudo estivesse impecável para a visita do padre, o brilho do Cristo era uma parte essencial da festa. Muitas vezes os crescidos, em particular as donas de casa que gastam horas e horas a arranjar as casas, a escolher os enfeites de Natal e, por fim, a esmerar-se nos cozinhados, sentem essa indiferença. Talvez esta crise nos permita voltar a dar importância ao que não se compra mas que transmite tanto afecto e empenho no bem estar dos outros.
Qualquer que seja a composição química dos seres, estes estão sempre em “boas mãos” quando estão com o professor Doutor Salvador Massano! : )
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