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quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

- Mas não lhe tiraram a carta!

De ano para ano aumenta o número de doentes que vão obedecendo à lei da morte. Quando tenho conhecimento de uma situação destas sinto sempre um choque a que não consigo habituar-me, sobretudo quando não estou à espera. Foi o que aconteceu recentemente. Um doente de 87 anos faleceu no dia a seguir ao Natal, mas só tive conhecimento oito dias depois ao ler o jornal que anunciava a missa do sétimo dia. É certo que tinha uma idade avançada, mas nada fazia prever uma situação destas, até, porque, alguns dias antes do passamento, fui visitado, mais uma vez, pelo senhor na companhia da esposa. Tratava-se de uma pessoa delicada, simpática, culta, que cultivava boas maneiras e com uma cabecinha a trabalhar em pleno. Claro que tinha as suas maleitas, mas estava compensado, até o tremor tinha diminuído. Sempre sorridente, após ter perguntado como andava, respondeu que se sentia muito bem e queria ver se aguentava mais uns tempos. – E sabe porquê, senhor doutor? O senhor sabe há quantos anos estamos casados? Respondi: - Há uns bons anitos! – 67 anos! 67 anos! Não é por nada mas gostava de comemorar os 70. A esposa, meio envergonhada, disse: - Se for essa a vontade de Deus! Respondi: - Por mim farei todos os possíveis para que tal aconteça. Riram-se. Via-se mesmo que estava satisfeito, facto que contrastava com um período anterior quando lhe recusaram a renovação da carta de condução por causa do seu tremor. Fiquei estupefacto, porque se tratava de um tremor senil e não parkinsónico. O senhor deprimiu-se, gravemente, porque adorava conduzir, embora limitasse as suas viagens para ir de casa à consulta ou fazer pequeninas coisas muito circunscritas devido à sua idade avançada. Tinha perfeita consciência da situação e cumpria escrupulosamente os seus deveres. Ao não renovarem a carta provocaram-lhe uma situação muito grave. Enviei-o a um neurologista para que o observasse. O colega elaborou um relatório comprovativo de que reunia as condições necessárias à condução. Graças aos nossos relatórios, a autoridade de saúde competente acabou por permitir que continuasse a conduzir. Nunca vi tamanha felicidade quando me apareceu para agradecer a minha colaboração. Depressão? Qual quê! desapareceu como por artes mágicas.
A sua responsabilidade enquanto condutor ficou perfeitamente demonstrada após este episódio. Vi-o várias vezes nas suas manobras quando ia à consulta. Como era sempre dos primeiros a chegar, tal facto permitiu-me estudá-lo. Impecável a forma como conduzia. A sua atitude rodoviária contrastava, e de que maneira, com o comportamento de muitos que pululam por aí.
Este episódio foi comentado pela sua esposa que hoje me procurou acompanhada pela filha. A sua tristeza era evidente. – Andava tão bem senhor doutor! Já não vamos fazer os setenta de anos de casados. - Pois não! - Mas não lhe tiraram a carta! – É verdade!
Cada vez que um doente morre é como morrer um pouco…

6 comentários:

Anónimo disse...

Eis um post que nos faz pensar. Por vezes não damos importância a coisas que julgamos pequenas. Pequenas para nós. Suplementos de vida para outros, ainda que, neste episódio que aqui nos conta, a vida não tenha sido muito mais longa. Mas foi, no período em que durou, importante essa coisa insignificante para a quase totalidade que é manter a carta de condução a um octagenário.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
Na vida há coisas pequenas muito grandes! Afinal a vida também é a soma de muitos instantâneos que perduram mais ou menos tempo em estados de alegria ou tristeza.
Mas a lei da morte está sempre em vigor e cumpre-se muitas vezes sem anúncio, sem planos, sem que nada pudesse antecipar ou adiar o acontecimento. Quando as pessoas estão felizes custa a aceitar, mas ao mesmo tempo se estavam felizes foi melhor assim!

Bartolomeu disse...

A Delta cafés (sem desejar fazer publicidade)tem impresso nos pacotinhos de açucar, a seguinte frase: "Se a vida é um novelo de emoções,"
Percebe-se que esta frase incluí os cafés que a Delta serve, no leque de emoções que compõem a vida.
O António, o Lavoisier, enunciou na sua lei de ouro que na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Não temos qualquer dúvida acerca desta reconfirmadíssima lei. Dúvidas que surjam, têm certamente a ver com o preenchimento do percurso entre a transformação do magma em ser humano e a sua reciclagem com destino novamente em direcção ao magma. Refiro-me à matéria. Para uns... a emoção caracteriza-se pela posse de licença para conduzir, para outros, manter a vida daquele que deseja possuír a licença, para outros ainda, fornecer o café e...o açucar. Porém, quando aquele que possui a licença, se vai, todos os restantes notam a falta. Em conclusão, a matéria não conta, o que conta, são as emoções.
Abençoados sejais, aqueles já escassos que ainda morrem um pouco, quando outro morreu.
;)

Suzana Toscano disse...

É bem verdade, a carta de condução é uma espécie de atestado de robustez para a vida activa e prova de autosuficiência, por isso é tão emblemática para os que já chegaram à parte final da vida. Lembro-me bem do pânico do meu pai quando tinha que renovar a carta, já passados os 80. Treinava-se no equilíbrio, ia dar voltinhas ao quarteirão e nem dormia na véspera. Depois, ganhava uma alma nova, mesmo quando deixou de conduzir. Mas o facto de "passar" na renovação ir era um triunfo...O mesmo se passou com o meu sogro, é realmente interessante ver o que são os "marcos" que dividem os velhos dos novos e como essas matérias são importantes.

PA disse...

Sentimento quase biunívoco.
Quando um médico (com quem nos relacionamos) morre, também um bocadinho da vida de nós, pacientes, ou familiares dos pacientes, "vai" também com ele.

... verdade !!!

Suzana Toscano disse...

É verdade, cara Pezinhos, sentimo-nos abandonados, os bons médicos deviam ter uma tolerância especial para esperarem por todos os que precisam deles!