Construir uma doença é uma tarefa difícil mas muito importante, porque quando adquire “personalidade” própria torna-se muito mais fácil a sua identificação, diagnóstico, tratamento e prevenção. O problema é quando se começa a “exagerar” nos critérios levando a um aumento da prevalência “artificial” com todos os inconvenientes decorrentes. A "medicalização" da sociedade é uma realidade que pode levar a que qualquer dia não haja ninguém “normal” ou “saudável”...
Hoje, no DN, apareceu uma notícia a dizer que “as mulheres têm mais disfunções sexuais” ... “A disfunção sexual afecta pelo menos duas vezes mais mulheres do que homens, mas no caso delas não há uma solução terapêutica eficaz, salvo em casos muito pontuais, disse à Lusa o presidente da Sociedade Portuguesa de Andrologia, Nuno Pereira. Este será, aliás, um dos temas em destaque no X Congresso da Sociedade Europeia de Medicina Sexual, que se prolonga até quarta-feira em Lisboa.
Estima-se que, no Sul da Europa, 30% das mulheres tenham algum tipo de problema sexual. Nos Estados Unidos, os números chegam a atingir os 50%/60% da população feminina. O especialista coordenou há cerca de dois anos um estudo que indicava que mais de um terço das portuguesas afirmavam ter falta de desejo, 32% tinham dificuldade em atingir o orgasmo, outras tantas referiam uma diminuição da excitação ou da lubrificação e 34% sentiam dor ou desconforto durante as relações...”
Claro que a disfunção sexual feminina existe mas será assim tão prevalente? Duas vezes a masculina! Se aceitarmos que a prevalência da disfunção eréctil poderá atingir 500.000 mil portugueses, então será possível que um milhão de mulheres portuguesas possam sofrer deste problema?! Meu Deus! Que epidemia!
“Fabricar uma doença” constitui uma preocupação para alguns cientistas que começaram a denunciar há muitos anos pelas consequências sociais para as diferentes comunidades.
Para os interessados recomendo a colecção de artigos da PLoS Medicine sobre “Disease Mongering”.
Mas para já avanço com as dez regras definidas há 15 anos por Lynn Payer para “fabricar uma doença”.
1. Escolher uma função normal e insinuar que há algo de errado com ela e por isso necessita de ser tratada;
2. Encontrar sofrimento onde ele não existe necessariamente;
3. Definir uma parcela tão grande quanto possível da população atingida pela "doença";
4. Definir a condição como uma moléstia, deficiência ou como um desequilíbrio hormonal;
5. Encontrar os médicos certos;
6. Enquadrar as questões de maneira muito particular;
7. Ser selectivo no uso de estatísticas para exagerar os benefícios do tratamento disponibilizado;
8. Eleger objectivos errados;
9. Promover a tecnologia como magia sem riscos;
10. Seleccionar um sintoma comum, que possa significar qualquer coisa, e fazê-lo parecer como sendo um sinal de alguma doença séria.
Payer L (1992) Disease-mongers: How doctors, drug companies, and insurers are making you feel sick. New York: Wiley and Sons. 292 pHoje, no DN, apareceu uma notícia a dizer que “as mulheres têm mais disfunções sexuais” ... “A disfunção sexual afecta pelo menos duas vezes mais mulheres do que homens, mas no caso delas não há uma solução terapêutica eficaz, salvo em casos muito pontuais, disse à Lusa o presidente da Sociedade Portuguesa de Andrologia, Nuno Pereira. Este será, aliás, um dos temas em destaque no X Congresso da Sociedade Europeia de Medicina Sexual, que se prolonga até quarta-feira em Lisboa.
Estima-se que, no Sul da Europa, 30% das mulheres tenham algum tipo de problema sexual. Nos Estados Unidos, os números chegam a atingir os 50%/60% da população feminina. O especialista coordenou há cerca de dois anos um estudo que indicava que mais de um terço das portuguesas afirmavam ter falta de desejo, 32% tinham dificuldade em atingir o orgasmo, outras tantas referiam uma diminuição da excitação ou da lubrificação e 34% sentiam dor ou desconforto durante as relações...”
Claro que a disfunção sexual feminina existe mas será assim tão prevalente? Duas vezes a masculina! Se aceitarmos que a prevalência da disfunção eréctil poderá atingir 500.000 mil portugueses, então será possível que um milhão de mulheres portuguesas possam sofrer deste problema?! Meu Deus! Que epidemia!
“Fabricar uma doença” constitui uma preocupação para alguns cientistas que começaram a denunciar há muitos anos pelas consequências sociais para as diferentes comunidades.
Para os interessados recomendo a colecção de artigos da PLoS Medicine sobre “Disease Mongering”.
Mas para já avanço com as dez regras definidas há 15 anos por Lynn Payer para “fabricar uma doença”.
1. Escolher uma função normal e insinuar que há algo de errado com ela e por isso necessita de ser tratada;
2. Encontrar sofrimento onde ele não existe necessariamente;
3. Definir uma parcela tão grande quanto possível da população atingida pela "doença";
4. Definir a condição como uma moléstia, deficiência ou como um desequilíbrio hormonal;
5. Encontrar os médicos certos;
6. Enquadrar as questões de maneira muito particular;
7. Ser selectivo no uso de estatísticas para exagerar os benefícios do tratamento disponibilizado;
8. Eleger objectivos errados;
9. Promover a tecnologia como magia sem riscos;
10. Seleccionar um sintoma comum, que possa significar qualquer coisa, e fazê-lo parecer como sendo um sinal de alguma doença séria.
2 comentários:
...E há sempre uma "investigação" científica independente e séria, muitas vezes para, directamente ou indirectamente pelo Estado, que avaliza tudo isso!...
Também li hoje num jornal qualquer que houve um estudo que apurou que, em regra, as pessoas casam com outras do seu meio social e assim o casamento não contribui para esbater as clivagens de classes.Quandoé que haverá um estudo provar cientificamente que os negros são morenos e os suecos loiros?
Prof. Massano, acho que falta aí nos top. 10 uma condição prévia: estabelecer o padrão de "normalidade". Nesse campo da sexualidade, a construção de um padrão segue exactamente os passos da nossa sociedade standard, tudo muito arrumadinho, muito elegante, muito feliz, muito sucesso e muita realização. Quem sair da esquadria, só pode estar doente, a moldura está certa de certeza. E, à conta disso, tornamo-nos "incaracterísticos", como dizia Bracinha Vieira no Público da semana passada, a alternativa é sermos doentes. Lá caimos nós no Admirável Mundo Novo, os Alfa que definem o padrão, ou ditam as regras, os Betas que as divulgam, os Gama que se submetem.Mais ou menos isto, já li o livro há umas dezenas de anos, mas o seu post trouxe-mo à memória. Com tanta liberdade e afinal só vivemos a pensar em encafuar-nos no padrão e a condenar como desviantes quem se atreve a ficar de fora! Qualquer dia temos que trazer relatórios médicos no bolso para provar que não temos mácula física, mental ou emocional.
Em 1960, Irving Wallace escreveu “O Relatório Chapman – Vida Íntima de 4 Mulheres” romance que conta a história de um psiquiatra que decide fazer estudo sobre o comportamento sexual feminino, inquirindo a vida de 4 mulheres típicas do American way of life, concluindo que tanta felicidade aparente escondia muitas frustrações e provocando o escândalo com isso. O tema da sexualidade feminina era ainda tabu, talvez por isso também o grande êxito que teve. No livro, a iniciativa do Dr. Chapman cria polémica entre os seus colegas, vale a pena transcrever aqui uma passagem: “Todos os vossos diagramas, tabelas falam do acto físico: frequência, quantidade. Isso nada diz às mulheres sobre o amor ou a felicidade conjugal. Separar o acto sexual de qualquer afecto é um grande erro. (…) a divulgação do biologicamente normal, sem conseguir medir outros factores, leva a sentimentos de culpa e de erro que conduz ao sofrimento. As regras da maioria não devem ser consideradas medida padrão do normal, só porque são da maioria.”
É curioso que agora, ao dar umv vista de olhos nesse velho livro, reparo que na altura o padrão procurava "graus de felicidade" e queria, portanto, ajudar as pessoas a serem felizes. Hoje, esses estudos, com os mesmos temas, separam os "saudáveis" dos "doentes", gerando em seu torno uma censura social, uma espécie de exclusão a que estão condenados se não "se tratarem" ou, como se diz, "procurarem ajuda médica". É uma subtileza terrível, já patente nos estudos com os deprimidos, os gordos, os hiper-qualquer-coisa,a saúde é obviamente uma condição para se viver bem, mas deixou de estar como condição de felicidade, parece que ela é em si mesmo, o objectivo - se não és assim ou assado, como é que podes ser feliz? Curioso como o livro de Chapman parece tão antiquado...
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