Vi ontem a notícia sobre as vicissitudes que ainda está a sofrer a múmia de Tutankamon. Não costumo partilhar de superstições nem crendices, mas a verdade é que me senti como se estivesse a devassar o que devia ser respeitado e não consigo alcançar o grande benefício que virá do facto de terem tirado o corpo do seu sarcófago, deixando-o exposto ao público, numa redoma de vidro, tapado com um lençol.
Pode haver muitas razões científicas, parece que se receava que a múmia se fosse deteriorando com o tempo, a humidade e mais mil e outros factores que, no entanto, não impediram que ela resistisse uns míseros milhares de anos…
O facto é que se assistiu em directo àquilo a que poderemos chamar uma profanação, à exposição do que outras crenças e outras ciências tinham cuidadosamente ocultado, talvez precisamente para que, no imaginário “para todo o sempre”, o belo rei conservasse eternamente a sua imagem majestosa, os seus ouros, a sua túnica e, sobretudo, a sua juventude.
Podia ter-se talvez garantido a preservação do corpo sem o expor, dizendo ou calando que se tinha feito, mas respeitando na essência o sentido transcendente do ritual que o determinou. Mas não. Sejamos práticos. De um lado, a grandiosidade do que é terreno, o sarcófago e a máscara de ouro. De outro, miserável, negro, carcomido, o esqueleto de um ser humano que morreu de uma infecção na perna.
Tutankamon será talvez preservado, mas como um pobre mortal. Tínhamos que matar a ilusão da perenidade, tínhamos que matar outra vez o rei.
Pode haver muitas razões científicas, parece que se receava que a múmia se fosse deteriorando com o tempo, a humidade e mais mil e outros factores que, no entanto, não impediram que ela resistisse uns míseros milhares de anos…
O facto é que se assistiu em directo àquilo a que poderemos chamar uma profanação, à exposição do que outras crenças e outras ciências tinham cuidadosamente ocultado, talvez precisamente para que, no imaginário “para todo o sempre”, o belo rei conservasse eternamente a sua imagem majestosa, os seus ouros, a sua túnica e, sobretudo, a sua juventude.
Podia ter-se talvez garantido a preservação do corpo sem o expor, dizendo ou calando que se tinha feito, mas respeitando na essência o sentido transcendente do ritual que o determinou. Mas não. Sejamos práticos. De um lado, a grandiosidade do que é terreno, o sarcófago e a máscara de ouro. De outro, miserável, negro, carcomido, o esqueleto de um ser humano que morreu de uma infecção na perna.
Tutankamon será talvez preservado, mas como um pobre mortal. Tínhamos que matar a ilusão da perenidade, tínhamos que matar outra vez o rei.
12 comentários:
Muito bom, este post, que com a devida vénia irei linkar...
Seja muito bem vindo, caro André Correia e muito obrigada!
Suzana
Tutankamon antes de ser uma peça histórica da antiguidade egípcia, também foi um ser humano, um homem, que viveu uma vida e morreu, rodeado certamente da sua família e amigos na alegria, na tristeza e na saudade. Algo que compreendemos muito bem.
Entre o homem Tutankamon e o exemplar histórico da sua múmia, foi esta que vingou, secundarizando o homem, naquilo que é o respeito que nos deveria merecer a sua morte.
Margarida, parece que a nossa civilização só consegue conviver com despojos, com objectos sugados da sua simbologia, do seu sentido impenetrável. Há que abrir, dissecar, radiografar, reconstituir, mostrar o que a técnica consegue vencer, vejam lá se não está igualzinho ao que devia ter sido? E isso que interessa, digo eu? Agora não temos segredos. Nem Tutankamon. Só a máscara.
Ah... mas é muito simples cara Suzana: Dá um dinheirão enorme em bilhetes. Eu próprio já estive cara a cara, separado por uns quatro dedos (e um vidro) com o homem mais poderoso que já existiu, existe ou existirá: Ramsés II. No museu do Cairo fazia-se fila para comprar o bilhete à parte e ver a sala das múmias. Também se fazia fila para ver o espólio de Tutankamon que é absolutamente impressionante, e já na altura a múmia não estava dentro do sarcófago, como hoje ouvi dizer na TV. Exporem-na foi apenas mais uma medida neste circo que mistura cultura e curiosidade, enfim tudo aquilo que tem sido a glória e ruína do Egipto, para quem conhecer minimamente a sua história.
Pois essa é uma boa explicação, caro monteiro, a mim é que me estava a custar admitir, o que é que quer? Acho que tinha um fraquinho por Tutankamon, é uma coisa do liceu, quando estudávamos este rei dentro do seu sarcófago a protegê-lo dos olhares ímpios, mais a maldição para dissuadir quem ousasse tirar-lhe o sossego do túmulo, como reforço da sua protecção. Não sei se ainda quero ir ao Egipto...
Cara Suzana,
Compreendo lindamente o seu ponto de vista, simpatizo com ele (o ponto de vista), no entanto, considero de extrema importância - e pela positiva - a decisão de tirar a múmia de dentro do sarcófago.
A minha perspectiva não se prende com uns meros motivos comerciais, mas sim com o trabalho de um homem que pretende devolver pedaços da história ao seu país. Estamos a falar do Egipto tal como é actualmente. Estamos a falar de um país, com uma religião extremamente agressiva e que, na sua vertente do fundamentalismo, não só não respeita os milhares de anos de história dos seus povos como também ainda pretende apagar quaisquer vestigios do passado.
Por muito arriscada, e contestada, que possa ser a decisão de expôr a múmia do Faraó é uma forma de relembrar um povo da fantástica história que tem. Para nós, é pouco importante que se trate de um rude golpe no nosso imaginário, mas para eles é muito importante que reconheçam, aceitem e tenham orgulho nas suas raízes sem recurso a fantasias.
Eles precisam do Faraó deles mais do que nós, daí que eu tenha o maior respeito pela decisão tomada.
Pesando as coisas desta maneira, de um lado do prato a profanação do sarcófago e do outro lado o benefício que pode ter para aquele povo relembrar a sua bela história -como diz o caro antrahx, subscrevo este último ponto visto.
Cara Anthrax, a questão é que eu não vejo em que é que esta acção em concreto possa contribuir para um melhor esclarecimento e grandeza histórica de Tutankamon. Que exponham as suas riquezas, que divulguem as suas práticas religiosas, que as expliquem e lhes dêem dignidade, não tenho qualquer dúvida. Mas a explicação que ouvi foi de carácter científico e os ritos funerários no Egipto Antigo estão mais que esclarecidos, há múmias expostas e estudadas (pelos vistos até Ramsés II, como conta cmonteiro), então, para quê expor esta, fora do seu sarcófago real?
Cara Suzana,
A "grandeza" de Tutankamon é um lenda dos nossos dias. Tutankamon foi um rei menor. Mas não é isso que está em questão. Se tenho alguma reticências em que ver cadáveres expostos, a alinhar pelo seu raciocínio poderia também privar as pessoas de verem tantas outras coisas que contribuem para a massificação da cultura e do conhecimento da nossa história.
Quando voltei de lá vim com um conhecimento muito mais rico sobre a história do Egipto graças ao que vi e graças (impressionante) à cultura vastíssima sobre o assunto que os guias turísticos têm e que transmitem (inclusivamente, por curiosidade, mais tarde investiguei o assunto e constatei que para ser guia turístico no Egipto é preciso estudar de forma muito séria História).
Quanto a outro comentador: "Profanação" é algo exagerado. Não vi qualquer profanação de nada. Pelo contrário vi muito cuidado na conservação de tudo, o que até do ponto de vista económico faz todo o sentido; se estragarem aquilo dão cabo de uma fonte de riqueza importantíssima.
No Vale dos Reis ou das Rainhas por exemplo, encontra todos os dias cientistas de todas as nacionalidades a estudar todo aquele espólio. Calculo que um cientista terá todo o cuidado em não "profanar" mas sim em conservar.
A mim, cara Suzana, não me inquieta a exibição da múmia.
Trata-se de uma questão complexa, por depender de numerosas vertentes - éticas, religiosas, culturais e outras -, que me parece estar a ser complicada ...
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