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domingo, 24 de fevereiro de 2008

As leis e os filhos


Disse António Costa que as leis são como os filhos, ganham vida própria. É uma comparação curiosa.
O que me parece é que estamos demasiado habituados a fazer leis que, em princípio, não chegam a cumprir-se ou a ser aplicadas e por isso ficamos muito admirados quando acontece levar-se a sério o que ficou escrito.
Um dos grandes problemas da nossa democracia é a ligeireza com que se fazem, desfazem, corrigem e criticam as leis, que adquirem uma “plasticidade” que raia o absurdo. Legitima-se, desde tempos remotos, as mil e uma estratégias para lhes deturpar o sentido, como se elas já tivessem nascido tortas ou intoleráveis e convive-se bem com isso, do mesmo modo que se convive bem com leis drásticas, ditas exemplares, que não são mais que respostas mal humoradas à certeza de que ninguém vai cumprir coisa nenhuma. E depois, um belo dia, lá calha que a lei é aplicada, levada a sério, e aí vem à luz do dia o seu exagero, a sua injustiça, ou a sua inaplicabilidade. As leis não “ganham vida própria”, o problema está em não se ter previsto que vida se queria para elas, que obstáculos iriam encontrar e se eram ou não devidamente adaptadas para os enfrentar ou resolver. As leis não são, ou não deviam ser, barcos à deriva, velas largadas ao sabor dos ventos.
Nesse ponto, de facto, são um pouco como os filhos, não basta arranjá-los muito arranjadinhos, alimentá-los e deixá-los sair para a rua. É preciso calcular os riscos que correm, as probabilidades de terem êxito, os perigos que vão enfrentar, educá-los para serem um elemento positivo da sociedade, alguém que contribua para a tornar melhor vencendo as dificuldades sem atropelar ninguém nem deixar que a atropelem.
É difícil fazer leis que sigam o caminho que lhes estava previsto se não se perdeu tempo a preparar ou a avaliar esse caminho, ou a prever-lhe as consequências. Uma lei não é uma abstracção, em suma, uma teoria.
Nisso, de facto, são parecidas com os filhos, se lhes ditarmos regras sem contar com a reacção, é mais que certo que nos dêem problemas…

4 comentários:

PA disse...

Cara Dra. Suzana, não sou jurista, mas gostaria de lhe dizer o seguinte. Uma lei, por melhor que seja, dificilmente não terá fragilidades, lacunas, até erros.
Basta atender ao facto de que a sociedade não é estática. E portanto, uma lei terá dificuldade de acompanhar a dinâmica da sociedade. Por mais previsibilidade que a lei contenha.

O grande problema, parte das vezes, quanto a mim, situa-se, no caso português, no seguinte:

- as leis fazem-se, mas não se aplicam. Ficam "guardadas".

De uma forma muito, muito simples ficou aqui, o meu ponto de vista.

FranciscoSantos disse...

Dra Suzana Toscano,
Quero dizer-lhe que aprecio a forma como discorre sobre como se legisla mal e sem pensar.
Reforçando essa ideia, permito-me chamar a atenção para a forma ilegal e anárquica como a equipa ministerial da Educação se tem entretido a "tratar da mercearia" (forma como alguns socialistas falam da escola pública).
Os atropelos à hierarquia das leis são mais que muitos: descobriu-se que os decretos podem ter passagens com carácter vinculativo não muito forte, como aquela de se seguirem as determinações de um inexistente Conselho Científico para a Avaliação de Professores; descobriu-se que um fórum interno de uma direcção geral tem poderes para obrigar os órgãos de gestão a procederem como se tivessem sido revogados decretos-lei; descobriu-se ainda que um despacho de um secretário de Estado pode impor a aplicação de uma norma que altera os regulamentos internos das escolas, os quais foram elaborados com base nas determinações de um decreto lei ainda em vigor.
Pode crer Sra. Dra. que tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto tem a mão e a assinatura da equipa liderada pela Sra. ministra Maria de Lurdes Rodrigues.

Bartolomeu disse...

Temos de convir, que o princípio da observação de António Costa, é correcto. As leis podem ser como os filhos, se a optica do legislador for norteada por princípios como a etica, a prevenção, a formação, a correcção, a honestidade, a igualdade e... o amor.
Sabem quem educa, quem cria, quem apoia, quem ensina, quem acompanha um filho, que tem de o fazer com amor. Sabem quem educa um filho que a "lei" que lhe impõe, tem de ser acima de tudo justa e frutuosa. A lei não pode ser nunca, somente punitiva. Se um pai se limitar a punir os actos, as acções do seu filho, criará, muito possívelmente um monstro.
O equilíbrio e a justeza com que o pai aplica a lei, a forma como a a justa ao maior ou menor grau de abuso do filho, é a garantia para que seja respeitado e amado. Em suma, quanto maior for o amor que o pai colocar nas regras que deseja que o seu filho observe, melhor será certamente o futuro carácter do filho.
Acredito que assim seja, cara Drª. Suzana.

Suzana Toscano disse...

Cara Pezinhos, o poder legislativo e o modo como ele é exercido é talvez o maior teste à actuação de quem está no poder a cada momento. Vem nos livros do 1º ano de Direito que a lei deve ser clara e entendível pelo como dos cidadãos a quem se destina, sob pena de criar sentimentos de injustiça, arbitrariedades ou anomia, esse alheamento do que se está a passar como se nada significasse qualquer valor ou princípio. É também reconhecido pelos manuais e política e inúmeros textos sobre a organização da sociedade e acção dos que governam que a mudança é um processo complexo, que exige uma determinação forte mas também uma c lareza de objectivos e que deve ser acompanhada pelos que pretendem que essa mudança se verifique. Deve haver umas largas centenas de documentos, textos, conferências e teorias sobre a gestão da mudança, não é por acaso, embora muito do que aí se diz seja quase intuitivo, mas é bom que surja organizado e pronto a consumir pelos que querem agir.E aí pode ler-se que a resistência à mudança é um processo natural, ou seja, absolutamente previsível, embora em diferentes graus conforme o contexto social e, sobretudo, o modo como ela é percebida, com confiança ou desconfiança. Essa resistência tem várias fases, em termos muito simples, são: choque, recusa, revolta, negociação, reflexão e, se estas correrem bem, a aceitação e o princípio da mudança efectiva. Quando se prepara uma lei e se decide quanto ao seu teor, isto tudo tem que ser avaliado, calculado, muito antes da correcção jurídica propriamente dita, ou seja, da elaboração formal do diploma (o que compete aos juristas, embora duvide de que sempre assim aconteça porque no Parlamento, por exemplo, não há uma comissão de redacção especializada). É claro que tem razão, a sociedade não é estática e por isso pode vir a haver desajustamentos, mas a actividade legislativa também é dinâmica, o que acontece é que tem que haver um mínimo de estabilidade no ordenamento jurídico para que o processo de mudança se conclua. E é para garantir essa estabilidade que a ponderação prévia do impacto legislativo é um momento muito crítico e exigente. Ou devia ser, para que as leis pudessem ser respeitadas e aplicadas a todos com equidade.
Caro fsantos, o problema de que falo não se esgota numa área de governação nem, infelizmente, num contexto político recente, é de há muito que se nota a má qualidade legislativa como reflexo da desvalorização da importância das leis, elas são tidas como um acto que se esgota no momento da decisão, atiradas para execução e depois logo se vê o que acontece (leia, a este propósito, os notáveis posts do Ferreira d'Alemida aqui, no 4r, intitulados Tesourinhos legislativos" e verá do que se fala). É de há muito que se nota, mas é claro que dá mais nas vistas quando se destinam a grandes grupos, como é o caso típico das leis dos impostos ou dos direitos, liberdades e garantias. É também de há muito que a discussão está em cima da mesa, com a criação de gabinetes de modernização legislativa, comissões de acompanhamento das leis e, mesmo a nível europeu, de comités para rever e tornar mais facilmente apreensível a catadutapa de regulamentos, directivas e quejandos. Um teste à qualidade da democracia, com o qual todos os países se confrontam, não é uma discussão estratosférica entre juristas.
Caro Bartolomeu, obrigada por reforçar a minha tese, trata-se de agir como um "bom pai de família", expressão que vai caindo no esquecimento mas que significava muito bem o que se pretendia com a correcção legislativa.