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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

“Do inconveniente de ter nascido”

Durante a tarde cruzei-me com uma aluna. Perguntou-me como andava, e eu, vagamente, deixei transparecer qualquer coisa com a vida. Perspicaz, apesar da sua juventude, sugeriu-me Cioran, pesado, amargo, mas experiente até ao tutano da noite em matéria de dor e de sofrimento.
À noite abro o correio eletrónico e deparo-me com um livro do filósofo, versão francesa, amavelmente enviado pela aluna. Percebi o seu gesto. Ao mesmo tempo fez-me recordar que tinha adquirido há pouco tempo um livro do autor, a versão portuguesa, “Do inconveniente de ter nascido”. Fui obrigado a procurá-lo e, com muita dificuldade, acabei por o encontrar num monte perdido. Tinha lido apenas algumas passagens. São muitos aforismos e fragmentos, curtos, incisivos, profundos, dolorosos e estimuladores da criação de novas ideias. Um deles, por acaso um dos mais longos, chamou-me novamente a atenção: “Nós não corremos em direção à morte; fugimos da catástrofe do nascimento, agitamo-nos como sobreviventes que procuram esquecê-lo. O medo da morte é apenas a projeção no futuro de um medo que remonta ao primeiro instante. Repugna-nos, claro está, chamar flagelo ao nascimento; não inculcaram em nós que era ele o supremo bem, que o pior se situava no fim e não no início da nossa carreira? O mal, o verdadeiro mal, está porém atrás, e não à nossa frente...”.
A releitura deste fragmento fez-me recordar certas pessoas que, quando confrontadas com situações graves, amaldiçoam o facto de terem nascido. Mas as associações não ficaram por aqui. Um pequeno episódio ocorrido num programa televisivo acabou, também, por bailar. O apresentador, a propósito de qualquer coisa que não consigo reproduzir, presumo que estaria relacionado com o desejo de ter filhos - um desvio inusitado do programa de entretenimento -, perguntou à senhora se já tinha pensado que um dia, o tão ambicionado ser iria sofrer e morrer. Achava bem? Calaram-se ambos. Passados dois a três prolongados segundos, o programa continuou com gargalhadas e boa disposição à mistura. Mas a pergunta continua viva e a incomodar. A terceira associação prende-se com um interessante artigo de opinião, de António Vaquero, em que é comentado as “Últimas notícias sobre Deus e o Universo”. Tudo por causa de Stephen Hawking que, há pouco tempo, afirmou: “o universo criou-se do nada”. Sendo assim, Deus não é preciso.
A confusão entre ciência e religião é cada vez maior. O melhor é separá-las definitivamente. Não deixar que os teólogos se metam com a física e que os físicos não se armem em teólogos. Mas parece que ambos têm uma apetência, e até necessidade, para se enfiarem em áreas que não são as suas. Uns caem no Paradoxo de Deus e outros no Paradoxo do Universo. Aquela coisa do Bing Bang, um acontecimento em que muitos veem a mão divina e outros uma singularidade, faz-me lembrar o conceito “a catástrofe do nascimento” de Cioran. Só que aqui, nascimento do universo, os sobreviventes, muito agitados, não procuram esquecer, antes pelo contrário; querem saber o antes e como tudo começou. Não conseguem? Claro que não, porque o “mal vem de trás”, um mal que se chama inteligência humana, que pode servir para alguma coisita, mas não deixa de ser limitada, porque nada invalida que não haja outras formas de inteligência capazes de ver, de sentir e de explicar o que para nós é inexplicável. Sendo assim, para que serve a nossa pobre e limitada inteligência? Basta ver o que andamos a fazer, como resolvemos os problemas e interpretamos os acontecimentos. Razões mais do que suficientes para justificar o “Do inconveniente de ter nascido”...

10 comentários:

Bartolomeu disse...

A vós que haveis Senhor,
da palavra o dom
E do raciocínio humano,
a expressão máxima
Permiti que sem temor,
me dirija a vós, em bom tom
Deixando de lado o mundano
enaltecendo aquilo que nos aproxima.

Assim, aqui vos deixo um singelo soneto, de António Nobre, escrito em Coimbra, corria o ano da graça de 1889:

Em certo reino, à esquina do Planeta,
Onde nasceram meus avós, meus Pais,
Há quantos lustros, viu a luz um poeta
Que melhor fora não a ver mais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,
À falsa fé, numa traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reais

E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa árvore de Heróis que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:

Nada me importas, País! seja meu Amo
O Carlos ou o Zé da T'resa... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

;)

Catarina disse...

Caro Prof, ser sua aluna e poder ouvi-lo durante umas horas todos os dias deve ser “o máximo”! Me perdoe o desabafo à adolescente (que não sou!) ! : ) )
É sempre um prazer lê-lo, não me canso de o dizer! Terei que vir aqui (a este post) de novo... agora outras obrigações (as minhas) têm que ser cumpridas!

Jeune Dame de Jazz disse...

Concordo com a Catarina, acrescentando que, de facto, ser sua aluna é/foi uma grande, grande bênção! Quanto ao interessante legado de Vaquero, também, Richard Dawkins tem de ser lido: "Se este livro tiver o resultado que pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus na altura em que o pousarem" (in, A Desilusão de Deus). E, antes destes dois, fica a Arte de Argumentar do Anthony Weston. Veja-se: "petição de princípio (petitio principii): usar implicitamente a sua conclusão como premissa.

Deus existe porque é a Bíblia que o afirma e eu sei que isso é verdade porque foi
Deus, afinal, quem a escreveu!

Para escrever este argumento segundo a forma premissa-conclusão, teria de ser:

A Bíblia é verdadeira porque Deus a escreveu.
A Bíblia diz que Deus existe.
Logo, Deus existe.

Para defender a afirmação de que a Bíblia é verdadeira, afirma-se que Deus a escreveu. Mas, como é óbvio, se Deus escreveu a Bíblia, Deus existe. Logo, o argumento assume precisamente o que está a tentar provar" (p.50).

O meu abraço.

Pedro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Catarina disse...

Não entendo como o universo se criou, “provavelmente” do nada, de acordo com a nova (?) teoria de Stephen Hawking. O nada cria alguma coisa? Mas também não vou refutar agora essa teoria. Parece que à medida que os anos vão passando, a minha capacidade e paciência para as abstrações vão-se definhando.
Pouco conheço da obra de Émile Cioran – conheço, sim, o jardim onde ele passou tantas horas, Jardin du Luxembourg, e quem sabe se me sentei onde ele muitas vezes se sentou, se ouvimos Chopin no mesmo recinto : ) – o que sei é que foi um filósofo de um pessimismo extremo, cuja obra foi considerada “um romance filosófico sobre temas modernos: alienação, absurdidade, tédio, futilidades, agonia...” e onde o suicídio ou a ideia do suicídio teve destaque... embora este grande mestre da filosofia tivesse vivido uma vida longa; faleceu aos 84 anos de Alzheimer!

Dalai Lama tem razão quando diz: “O que mais me surpreende na humanidade é que o homem, perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde o dinheiro para recuperar a saúde. Vive pensando ansiosamente no futuro, de tal forma que acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse morrer e morre como se nunca tivesse vivido.”

Massano Cardoso disse...

O pensamento de Dalai Lama, que acaba de citar, é um elemento de peso que reforça o pessimismo quanto ao futuro da espécie humana e Heródoto também não lhe fica atrás...

Bartolomeu disse...

«Ha quem viva sem dar por nada... ha quem morra, sem tal saber»
é um dos versos do poema "velha da erva" de José Afonso - A consciência da vida, é aquilo que todos buscamos. A René Descartes, bastou-lhe convir o facto de pensar, para concluir a existência.
Para muitos, esta conclusão não basta, porque a inquietude de saberem que algo mais terá de existir, que justifique o injustificável, obriga-os a buscar o entendimento.
A "Jovem Senhora do Jazz" confronta-nos com um paradígma, da Bíblia, que não foi concretamente escrita pela mão de Deus, mas sim, por "inspiração" divina.
Em minha opinião, para que possamos aproximar-nos do desejo de reconhecer a existência de Deus, para depois a confirmarmos, precisamos de perceber o que buscamos, que conceito, que imagem, que ideia fazemos de Deus. Se nos parece que seja uma luz, se uma energia, se uma entidade física, espiritual, se algo de concreto, ou de abstrato, se individual, se multi-pessoal. Se o Deus que uma religião defende e professa, se um Deus que cada um sente íntimamente, se um Deus que se encontra em tudo o que existe, sendo tudo o que existe, Deus.
A busca do Homem é interminável.

Catarina disse...

Dalai Lama é positivismo, é harmonia, é paz, caro Prof., é presente! : )

Jeune Dame de Jazz disse...

Catarina,
Essa questão do «nada», às vezes, perturba-me...A influência de Nietzsche na obra de Cioran é notável e diria até perigosa - repare-se no androcentrismo de ambos. Porém, gosto do estilo destes silogismos: "amargos"! Só não entendo a profunda relação a Bach…
(E já que por aqui se fala tanto desse Deus (para mim pode ser deus: o demiurgo) leia-se, também, Mircea Eliade, não só pela relação à obra de Cioran, mas porque nos deixa um grande legado na filosofia da religião).
Bartolomeu,
Procurar a "consciência da vida"?! Isso é tão kantiano…! (E coitado do Descartes, ficou-se pelo argumento básico de um modus ponens). Não creio confrontá-los com o paradigma da Bíblia. Como bem deve saber, estão em causa as "teorias da argumentação" ou, neste caso, os escritos e diálogos sem o domínio de falácias argumentativas…e são tantas…tantas! Não "desejo reconhecer a existência de Deus"… E mais diria, essa busca do Homem com letra maiúscula, portanto a assumir homem/mulher é uma das consequências de movimentos bíblicos, da imposição do sintagma: "FAÇAMOS O HOMEM A NOSSA IMAGEM E SEMELHANAÇA". Deixe-me ser irónica, mas os confrontos do movimentos da exegese bíblica já se ultrapassaram há muito…risos. Mas olhe, leia uma pouco de Derrida: "tout autre est tout autre").

Bartolomeu disse...

Jovem Dama,
As filosofias morais, defendidas por Kant, o seu idealismo transcendental, merecem justo apreço também pela influência que operaram nos modernos filósofos.
A Bíblia, é ainda um livro que se me apresenta de difícil entendimento e, quando refere «diálogos sem o domínio de falácias argumentativas», imagino que estaja a situar-se no campo da teologia religiosa, no pragmatismo católico. Contudo, considero a metafísica, incontornável.