Vive sozinha no apartamento para onde se mudaram ainda o marido era vivo, em baixo havia um centro comercial pequeno onde podiam facilmente comprar o que precisassem, ambos eram muito ciosos da sua autonomia e independência e a casa nova fazia parte dos planos de uma velhice tranquila e confortável. Não conhece os vizinhos porque as pessoas mal se encontram, é tanta gente, bom dia boa tarde se se cruzam nos elevadores, é tudo e nunca esperou mais do que isso.
Nunca tiveram filhos, ela ficou sozinha, tentando conservar o seu espaço e a sua organização de vida sem depender de mais ninguém, apesar dos seus 81 anos continuou a tratar dos seus assuntos com o cuidado e o método que o marido sempre tinha posto nas coisas. As amigas de sempre foram morrendo ou estão incapacitadas, vai fazer-lhes companhia se a distância ainda lhe permite conduzir o seu automóvel, em alternativa telefona-lhes para pôr a conversa em dia, mas de resto dá pequenos passeios a pé ou aceita um convite para lanchar ao domingo em casa da família mais chegada.
Quando, há dias, a febre lhe subiu aos 39 graus, sentiu o terrível peso da solidão, queria água e não conseguia caminhar até à cozinha, lembrava-se dos comprimidos mas tinha frio, tanto frio, não podia levantar-se de noite para os ir buscar ao armário. De manhã, quando chegou a mulher a dias, gostou pela primeira vez daquela mulher estranha que lá ia fazer limpezas duas vezes por semana, em substituição da velha empregada que se reformara há três meses. A mulher, que até aí parecia de poucas falas e modos secos, revelou-se de um carinho enorme, foi a correr comprar pão, foi à farmácia pedir conselho e avisou a família, não a deixou um minuto até chegar uma das sobrinhas. No dia seguinte, mesmo sem ser o dia de lá ir, tocou à porta. Trazia um recado escrito de outra senhora em casa de quem também trabalha, no prédio ao lado, mandava o nome e o número de telefone, dizia que lhe desejava as melhoras e que não hesitasse em falar-lhe se precisasse de ajuda fosse a que horas fosse, “temos que ser uns para os outros”, dizia ela no papel.
Felizmente não era nada de cuidado, uma gripe apenas, dizia ela depois de passado o susto, mas nesta idade tudo é preocupação, sabes, algum dia temos que ir, o pior é ficar dependente e dar maçadas aos outros, mas o que me animou foi aquele recado, ainda há gente amável, não é como na televisão que só vemos mortos ao abandono e gente que não quer saber de ninguém, ainda há gente boa, não achas?
Nunca tiveram filhos, ela ficou sozinha, tentando conservar o seu espaço e a sua organização de vida sem depender de mais ninguém, apesar dos seus 81 anos continuou a tratar dos seus assuntos com o cuidado e o método que o marido sempre tinha posto nas coisas. As amigas de sempre foram morrendo ou estão incapacitadas, vai fazer-lhes companhia se a distância ainda lhe permite conduzir o seu automóvel, em alternativa telefona-lhes para pôr a conversa em dia, mas de resto dá pequenos passeios a pé ou aceita um convite para lanchar ao domingo em casa da família mais chegada.
Quando, há dias, a febre lhe subiu aos 39 graus, sentiu o terrível peso da solidão, queria água e não conseguia caminhar até à cozinha, lembrava-se dos comprimidos mas tinha frio, tanto frio, não podia levantar-se de noite para os ir buscar ao armário. De manhã, quando chegou a mulher a dias, gostou pela primeira vez daquela mulher estranha que lá ia fazer limpezas duas vezes por semana, em substituição da velha empregada que se reformara há três meses. A mulher, que até aí parecia de poucas falas e modos secos, revelou-se de um carinho enorme, foi a correr comprar pão, foi à farmácia pedir conselho e avisou a família, não a deixou um minuto até chegar uma das sobrinhas. No dia seguinte, mesmo sem ser o dia de lá ir, tocou à porta. Trazia um recado escrito de outra senhora em casa de quem também trabalha, no prédio ao lado, mandava o nome e o número de telefone, dizia que lhe desejava as melhoras e que não hesitasse em falar-lhe se precisasse de ajuda fosse a que horas fosse, “temos que ser uns para os outros”, dizia ela no papel.
Felizmente não era nada de cuidado, uma gripe apenas, dizia ela depois de passado o susto, mas nesta idade tudo é preocupação, sabes, algum dia temos que ir, o pior é ficar dependente e dar maçadas aos outros, mas o que me animou foi aquele recado, ainda há gente amável, não é como na televisão que só vemos mortos ao abandono e gente que não quer saber de ninguém, ainda há gente boa, não achas?
4 comentários:
Suzana Toscano, no seu melhor "estilo literário"!!!
Ontem mesmo passou na televisão, logo a seguir ao telejornal, uma reportagem no Bairro Alto, onde contrastava a vida nocturna de boémia e alienação, misturada com tentativas desesperadas de encontrar um sentido para a vida dos que têm uma esperança à sua frente e daqueles que já viveram a sua maior parte e que assistem abismados às mudanças do mundo e dos seres irrequietos que nele vivem. A reportagem entrou mesmo num convento onde meia-dúzia de religiosas assistiram num ecrãn à projecção de uma vida que elas dizem desconhecer, mas da qual lhes chegam os sons (talvez porque as janelas do convento não possuem vidros duplos).
E, ao assistirmos àquela reportagem, percebemos de imediato que desde o reporter à idosa que não sai da sua mais-que-velha habitação, todos esperam encontrar alguma coisa, mas algo lhes diz, talvez o instinto, que isso que esperam, só lhes poderá chegar, vindo da solideriedade. Tal como no bilhete que a vizinha do prédio do lado, mandou pela mulher-a-dias «temos de ser uns para os outros». Esta regra de ouro, transformou-se gradualmente em regra de lata e nessa condição, ganhou ferrugem; uma ferrugem que agora tende a estalar e deixar a começar ver uns restos de metal reluzente que por baixo, persistem tenazmente, alimentando-nos a esperança de que reencontraremos o caminho perdido da solideriedade humana.
Às vezes penso na velhice e preocupo-me. Não tanto pela solidão que ela encerra, há imensas coisas para fazer, lugares a visitar, solidariedade a oferecer, mas mais pelas doenças que incapacitam a vontade de ir ou fazer, ou da magra reforma que não permite uma vida condigna. Porque, quanto ao demais, de uma maneira ou de outra acabamos sózinhos...
Caro Bartolomeu, também vi essa reportagem, realmente vivemos grandes contradições, muitas vezes passa a vida inteira sem nos preocuparmos em criar ou manter laços com os outros, sejam de família, sejam de amizade, sejam de simples convivência que permita ao menos que alguém saiba o nome do outro. A solidariedade tem que ser primeiro construida pelos próprios e mesmo assim muitas vezes falha, sobretudo quando se chega a idades muito avançadas e a família já é longínqua. Porque as redes solidárias formais não conseguem chegar a todos, muito menos aos que as não procuram.
Caro jotac, pois é isso mesmo, enquanto tudo corre bem não sentimos a falta de ninguém, o pior é quando precisamos de apoio, no caso da velhice é mais que certo mas mesmo antes disso há alturas em quem uma mão amiga faz milagres.
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