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domingo, 18 de março de 2012

A praia

As discussões há muito ensombravam o relacionamento de outrora, cada dia era pior que o anterior, numa insatisfação crescente, numa exigência insensata, como se tudo o que ela fizesse o decepcionasse, como se tudo o que ambos tinham sonhado fosse agora pouco, muito pouco, e ela já não tivesse lugar na sua vida.
Ela angustiava-se mas ia desculpando tudo, até que aquele sonho se tornou recorrente.
Via-se a caminhar na praia deserta, ao longo da estreita língua de areia que separava a falésia do mar. Caminhava sozinha, num passo arrastado que deixava profundos sulcos a marcar o seu percurso e, no entanto, a reentrância de rocha que marcava o limite da praia continuava à mesma distância, como se o caminho crescesse à sua frente, desdobrando-se sem fim. Continuaria assim indefinidamente, apesar do cansaço, continuaria a olhar o rochedo sem o alcançar mas não olhava para trás, não parava, um sulco e mais outro, enterrando os pés na areia mole como se pisasse com força a sua solidão.
De repente, o suave marulhar das ondas mudava de tom. De murmúrio passava a rugido, a superfície calma do mar agitava-se e ela estremecia assustada ao reparar que a ondulação, antes firme e monótona, se movia agora em grandes massas transversais que avançavam sem explodir, esticando-se mais e mais até quase lhe lamber os pés.
Corria então para a falésia, a tentar abrigo das águas vivas, mas o rugido já era gritaria e o medo crescia no seu peito como as águas do mar cresciam para ela. As ondas enfurecidas rasgavam a superfície e abriam-se em lábios líquidos que se enrolavam até ganhar o ímpeto de bocas escancaradas em esgar tremendo, numa sucessão de goelas debruadas de dentes de espuma que cuspiam furiosas as gotas salgadas que lhe molhavam a cara e as roupas.
Então, perdida no seu sonho, via sumir-se a língua de areia onde se enterravam os seus pés e colava-se desesperada ao paredão de rocha lisa que lhe barrava o caminho e a prendia ali, sentindo nas costas a pedra húmida e fria enquanto os beiços ondulantes e raivosos abriam os dentes, mostrando o céu da boca escura onde ela ia entrar para sempre.
Acordava sufocada, gelada de suor e acreditava que o gosto salgado das lágrimas era a espuma da onda que a submergira.
Lembrou-se do seu sonho recorrente no dia em que ele chegou apressado, com os olhos ausentes e uma estranha expressão de euforia contida, a exigir-lhe uma conversa definitiva, a falar de outra mulher por quem se apaixonara e a pedir a separação.
Sentiu nas costas o frio gelado da falésia que não a deixava fugir e desistiu subitamente de o enfrentar, dessa vez não tentou proteger-se das palavras duras que a mergulhavam numa angústia insensata e punitiva e, depois, numa infelicidade profunda. Dessa vez, ouviu impassível quando ele finalmente falou, viu os sons a formar-se nas ondas da boca, a encurvar-se para ganhar força e a crescer para ela, “já não preciso de ti”, abatendo-se com a força bruta de uma ameaça adiada que finalmente se cumpre.
Quando ele saiu, fechou os olhos e viu-se de novo na praia mas já não sentiu medo. O mar estava liso e a língua de areia brilhava ao sol, seca e firme, alargando-se à frente dos seus pés num convite irrecusável para que retomasse o caminho.

8 comentários:

Unknown disse...

Lindíssimo. E num registo muito pouco habitual neste blog. A repetir. :-)

Ilustre Mandatário do Réu disse...

Os homens são criaturas bastante caninas. Infelizmente a mulher moderna, muito educada e possivelmente emancipada da mãe, ignora esta evidência. Pensa que o cão é uma criatura sofisticada.

Há que passear o cão. E as mulheres que se esquecem desta banalidade de base estão condenadas a pesadelos húmidos.

Quando li a passagem da "euforia contida" lembrei-me logo do meu vizinho quando leva o cão a passear. Encontro-o raramente no elevador e o canino lá está com uma euforia contida. E infelizmente com um fedor incontido a cão.

A outra certamente passeia o cão e este trocou de dono.

Aqui fica esta pérola para as que têm uma perninha a mais num cromossoma: "Há que passear o cão.".

Massano Cardoso disse...

Afogar em sonhos com ondas do mar é horrível. O pesadelo da origem da vida. Mas tudo muda quando as águas se acalmam e retrocedem.
Um belo poema em prosa.
Um beijinho

Suzana Toscano disse...

Obrigada, cara Sandra Martins, volte sempre!
Caro Ilustre Mandatário do Réu, é uma metáfora curiosa, essa do cão...
Caro Massano Cardoso, não se escolhem os sonhos ou as formas eleboradas como a nossa mente nos manda os alarmes,mesmo atrás do mais assustador pode realmente estar essa mensagem do regresso à vida. Um beijinho também, já com saudades de o ver, para quando uma conferência em Lisboa?

Bartolomeu disse...

http://www.youtube.com/watch?v=UGPq0YQeTRM&feature=related

jotaC disse...

Excelente!. À distância de um passo curto para tema de um bom romance…

Suzana Toscano disse...

Lindo, caro Bartolomeu, "Negra Sombra" e aquele som da flauta são um belo cenário de fundo para esta breve história!
Caro jotac,escrever um post curto já dá algum trabalho, é um treino ao contrário do romance, tentar dizer tudo em meia dúzia de linhas e não abusar da paciência dos leitores...mas fica a sugestao a fazer o seu caminho, muito obrigada:)

Tavares Moreira disse...

Um belíssimo poema sobre a vida e a sobre a ponte etérea que os sonhos nos ajudam a percorrer, ligando a realidade de um dia à do dia seguinte...