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sábado, 9 de junho de 2012

A Casa da Sombra (folhetim) - 3º episódio


Encorajada pelo sorriso franco com que a sua ousadia foi recebida, passou à sala iluminada e tirou do aparador um prato, um copo, os talheres e esperou que a patroa fizesse as honras ao pitéu. Só depois lhe perguntou se sempre era verdade que havia um fantasma na casa ou se as almas estavam em seu devido descanso, como Deus queria. È que na aldeia não se cansavam de lhe perguntar e já parecia mal que não se interessasse, além disso, se a patroa vinha para ficar havia que afastar boatos, para não ficar naquela solidão, e começar a receber visitas tal como o antigo patrão tanto gostava de fazer, aquela casa, ninguém diria, tinha conhecido dias de grande alegria de que muitos ainda se lembravam com saudade.
Ela riu-se, divertida. Havia ruídos na casa, sim, assustou-se muito até aprender a conhecê-los, nos primeiros dias o que mais lhe custou foi que a faziam sentir-se uma intrusa, como se alguma força oculta a quisesse expulsar da quietude que ali se instalara. Mas logo pensou que seriam as madeiras a ranger, ou os gonzos das portas mal oleados, gemidos não, pelo contrário, o que ela ouvia eram sons de regresso à vida, seriam talvez afinal uma forma da casa lhe dar as boas vindas, pensara assim para sossegar e logo os sons se tornaram familiares, embalando-a cada noite até adormecer. Revira isso tudo antes de responder, mas só disse, “Não se preocupe, mulher, vá descansada, aqui não há almas penadas e, além disso, eu não tenho medo dos mortos, só dos vivos, esses é que nos fazem mal…”
A caseira guardou as mãos no avental, para esconder a reza em que se embrenhara enquanto ouvia falar dos espíritos com aquele desafronto e suspirou, conformada. “Pois será, patroa, mas cá para mim eles afastaram-se com a sua vinda, o patrão velho não se conformava com o abandono da casa, foi o que foi, ralhou até alguém da família o ouvir, os espíritos têm muita força, é ver como veio de tão longe para aqui sozinha e, no entanto, já lhe fugiu a tristeza, que dava dó só de a olhar quando chegou. O espírito andava aí mas sossegou, não se fala mais nisso, amanhã já digo na aldeia, a casa chamava por si e agora a alma do seu sogro está em descanso. Ámen.” E benzeu-se, enquanto se dirigia para a porta, ainda a matutar no que ouvira. Por isso não reparou que o sorriso da patroa se esbatia enquanto o seu olhar seguia, intrigado, a estranha sombra que deslizava sob a luz do candeeiro e se esgueirava, sorrateira, pela frincha da porta trancada do corredor, desaparecendo na ala escura onde ainda estavam, intactos há anos, os antigos aposentos do sogro.
“Amanhã vou arranjar os canteiros à volta da casa”, disse ela em voz alta, a iludir o súbito arrepio, “depois mando caiar as paredes”, acrescentou. Só então lhe ocorreu que falava alto talvez para que a sombra a ouvisse e pudesse enfim descansar na certeza do seu propósito de ficar. Ah, a caseira e as suas crendices tinham-na influenciado, a ela, uma mulher da cidade, ainda acabaria uma velha tonta, a falar com as galinhas e a limpar as mãos ao avental enquanto desfiava rezas em surdina. Riu-se com ideia e isso apaziguou-lhe o espírito antes de adormecer profundamente na casa enfim silenciosa, enquanto a lua subia no céu, iluminando os campos até perder de vista. (continua)



7 comentários:

Bartolomeu disse...

Com efeito, as pessoas que vivem nas aldeias, frequentemente atribuem a sons e sombras naturais, origens sobrenaturais.
Lembro-me de quando fui viver para o campo e comecei a dar uns passeios depois do jantar pelos carreiros, acompanhado da minha mulher, da quantidade de sons e de sombras que não eram mais do que animais a deslocar-se entre as ervas e o efeito do luar a passar entre as ramadas das árvores, que se agitavam com o vento. Quando passámos as primeiras vezes pela aldeia e encontrámos as pessoas sentadas no largo, notei que nos olhavam com um ar admirado. Certa vez, uma dessas pessoas avisou-nos com todas as cautelas, que não era bom andar de noite pelos caminhos.
Então porquê, perguntei-lhe fingindo que não percebia as insinuações.
-Porque não é bom... é perigoso.
-Mas diz que é perigoso porque motivo?
-Porque... porque podem ter encontros...
-Encontros? Então e isso é mau porquê?
-Olhe... porque já houve para aí uns casos estranhos de lobisómens.
-Ahhhh!!! Lobisomens... pois, tem razão, é preciso ter muito cuidado com essa gente.
-Pois é... e olhe que chegam a atacar as pessoas.
- Imagino... Sabe?! Quando vivi em Lisboa também havia lá disso.
Olhou-me com um ar incrédulo e returquiu; Em Lisboa, lobisómens? Nunca tal ouvi dizer.
-Não?! Então olhe lá, você não costuma assistir às notícias na televisão?
- Costumo sim senhor, mas nunca ouvi dizer que em Lisboa houvesse lobisómens.
-Então é porque você não assiste às notícias com atenção. Não só ha lobisómens em Lisboa, como ha também almas-penadas. E ha-os em muito maior quantidade que aqui.
Ficou a olhar para mim com cara de desconfiado, pensando talvez que estaria a mangar dele. Para o sossegar, rematei a afirmação.
-Então olhe lá, você não ouve nas notícias que todos os dias atacam pessoas, assaltam e violam? Não é isso que os lobisómens fazem? E deixe-me dizer-lhe uma coisa; os lobisómens daqui até são mais civilizados que os da cidade, porque estes só atacam quem apanham pelos caminhos; e os da cidade chegam a entrar dentro das casas das pessoas.
Encolheu os ombros, desejou-nos as boas noites e lá foi à vidinha dele, se calhar, dando graças por nunca ter vivido na cidade...
;))

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Suzana
Este seu conto está cheio de hábitos e tradições muito portuguesas, afinal as nossas vidas são também um produto do ambiente em que vivemos.
É muito verdade que nas aldeias meias perdidas do nosso Portugal há um grande respeito pelas almas dos mortos que não largam certos sítios ou certas casas antigas, onde aí passaram tempos importantes das suas vidas, dando vida a muitas dessas aldeias longe de alguma modernidade própria das cidades lá longe. Mas não são apenas as gentes locais que prendem nas suas memórias antigas a vivência desses tempos idos, não tão longínquos como pode parecer, projectando-os no presente com certezas de que essas almas ali habitam. É engraçado que quando vou à minha casa na Beira, situada numa dessas aldeias que ninguém conhece, perdidas no tempo, tenho sempre a sensação de aí, sim, estar mais perto dos meus Avós, como se de cada vez que lá vou acontecesse um reencontro. E se me esquecesse teria alguém para me lembrar que a Avozinha da menina, que Deus tem, gostava assim, era assim que fazia …
Aguardo pelos próximos episódios, faltam dois mas poderiam ser mais para satisfação dos leitores. Pela minha parte não tenho pressa que o conto acabe...

Catarina disse...

Como é bom ter uma empregada que vela pelo nosso bem-estar! E esta tem uma ideia para apresentar... : )

Pinho Cardão disse...

..."não reparou que o sorriso da patroa se esbatia enquanto o seu olhar seguia, intrigado, a estranha sombra que deslizava sob a luz do candeeiro e se esgueirava, sorrateira, pela frincha da porta trancada do corredor, desaparecendo na ala escura onde ainda estavam, intactos há anos, os antigos aposentos do sogro..."
Comecei a ter arrepios na espinha!...
Oh Suzana, olhe que eu preciso de calma, muita calma!...

Suzana Toscano disse...

Ó caro Pinho Cardão, para quem está habituado às emoções das análises financeiras uma alma penada não pode criar qualquer frisson :)

Pinho Cardão disse...

Engana-se, cara Suzana, uma análise financeira não me dá qualquer emoção...mas só de pensar numa alma penada...ou numa casa assombrada...ou num demónio vagueante...

Suzana Toscano disse...

Pois, isso é que são emoções fortes, estamos de acordo, mas olhe o que diz a heroína do conto, há que ter medo é dos vivos...