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terça-feira, 17 de abril de 2012

Lírios


São muitos os dias em que temos necessidade de lhes dar significado e tirar algum sabor. Habitualmente são os dedicados ao estranho descanso que mais angústia provocam, daí, muito provavelmente, a depressão inerente ao domingo à tarde, tão bem retratada por Namora numa obra com o mesmo título. Depois do almoço, em que foi patente a inércia de um dia de primavera acompanhado do barulho e conversas típicas de quem tem necessidade de almoçar, por enquanto ainda vamos tendo, senti o pulsar do tempo e o envelhecer do corpo. Para remediar os seus efeitos abalei sem convicção à procura de algo que me enchesse ou justificasse mais um dia de existência. O corpo estava minimamente compensado e abastecido para longas horas e o sol convidava a um pequeno passeio, o resto deixei à mercê do tempo e da fortuna. Acabei por tropeçar num estabelecimento aberto aos domingos onde sempre se podem ver algumas coisas, úteis e, sobretudo, inúteis, mas suficientes para, eventualmente, desencadearem apetência à aquisição de algo capaz de tranquilizar a alma, dando-lhe uma espécie de alimento ou de energia capaz de a entreter ou de ajudar a passar o tempo angustiante que me martirizava.

Vi um canto cheio de estampas e molduras, desengonçadas, sujas, algumas rasgadas, sem qualidade ou interesse nenhum, mas, mesmo assim, desafiou-me a espiolhar, quem sabe se no meio de tanta tralha inútil não apareceria algo que me enchesse as medidas ou fosse suficiente para despertar a minha atenção. O dia ia a galope e eu necessitava de algo para o justificar. Muitas vezes a única justificação que encontro é acariciar o tempo. Eis que, no meio da inutilidade concentrada, filha de um qualquer ser humano perdido por esse mundo, me deparei com um quadro a representar lírios. Não é que fosse de grande qualidade, mas tinha alguma beleza e despertava sentimentos de prazer. Olhei, toquei, apreciei e fiquei de olho nele. Peguei-lhe com medo de que alguém o adquirisse, como se ali, naquele espaço, e no mesmo tempo, houvesse um outro louco como eu à procura de uma justificação para um tarde primaveril. Não é que fosse impossível, mas era altamente improvável, porque para aquelas bandas adormecem alguns exemplares que ando a cobiçar há muito. Uma espécie de desafio, quero adquiri-los, mas não faço, aguardo que alguém os leve. O que é que eu ganho com isso? Nada, pelo contrário, por vezes até perco, porque ao chegar vou ver se ainda estão no mesmo sítio, e quando não estão arrependo-me de não os ter adquirido. Nessa altura ficam dissipadas quaisquer dúvidas sobre o meu real interesse. Paciência. Rapidamente desvaneço os meus sentimentos de frustração, descarregando sobre algo que me dê prazer.

Neste caso, quadro com um vaso de lírios, não deixei que testasse a apetência de outro. Uma ninharia. Às vezes, coisas interessantes e belas são etiquetadas com um valor desprezível. Depois fiquei na dúvida se o adquiriria por causa do baixo preço, da arte inerente ou do valor simbólico dos lírios.

Veio-me à memória a obra de Érico Verissimo, Olhai os lírios do campo, em que o título é justificado quase na parte final, quando Eugénio, médico, se lembra de citar Olívia, a sua colega, a sua amante, a sua dor, o seu passado, o seu fantasma constantemente presente, que, um dia, lhe citou uma passagem bíblica, "Observai como crescem os lírios: não fiam, nem tecem. Porém, digo-vos que nem mesmo o rei Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles". O impacto desta frase foi determinante para que o protagonista da obra passasse a ver o mundo de outra maneira, em que "a felicidade não é sinónimo de sucesso nem de conforto", mas sim de dedicação e empenho em favor dos outros. Não é por acaso que o lírio é, desde sempre, considerado como sinal de pureza e incorporado nas diferente mitologias como forma de expressão de nobres sentimentos humanos.

Num mundo angustiante é preciso deixar a mente permanentemente aberta para que possamos absorver novas fragrâncias, novas ideias e novos ideais, "não para ganhar a vida, mas para ter a certeza de existir".

Quem diria que ver "lírios", coisas simples, banais, fáceis de encontrar, provoca sensações diferentes, agradáveis e reconfortantes? Agora, sempre que puder, irei "olhar para os lírios do campo", através do quadro com lírios, um quadro simples, perdido, ignorado. Realmente nem Salomão se vestiu como um deles...

5 comentários:

Tavares Moreira disse...

Caro Professor,

Que encanto, a prosa do Erico Veríssimo, no Olhai os Lírios do Campo, que suave perfume literário! Fez muito bem em recordar-nos esse grande literato brasileiro.

Margarida Corrêa de Aguiar disse...

Caro Professor Massano Cardoso
São as coisas aparentemente sem importância que ganham relevância, aquela que as circunstâncias ditam.
E também são as coisas mais simples e banais as mais agradáveis tal é a complexidade das coisas em que consumimos os nossos sentidos. Uma vez libertos e sossegados descobrem o que andava escondido. São os "lírios do campo"!

Bartolomeu disse...

«Muitas vezes a única justificação que encontro é acariciar o tempo.»
Sempre o tempo... e, acaricia-lo, sabendo como, é também uma forma de nos acariciarmos, de acariciarmos a vida e o que ela representa, a nossa e a de tantos que conosco partilham as suas...
Belíssimo poema, caro Professor!

jotaC disse...

“(…) Num mundo angustiante é preciso deixar a mente permanentemente aberta para que possamos absorver novas fragrâncias, novas ideias e novos ideais, "não para ganhar a vida, mas para ter a certeza de existir".(…)”.

Permita-me, Caro Professor, felicitá-lo por mais este texto

Suzana Toscano disse...

"jovem é aquele que se admira e se maravilha", dizia um poema sobre o dom da juventude como sendo uma atitude que não depende da idade mas desta preciosa capacidade de manter os olhos abertos para apreciar o que nos rodeia e as "novidades".