A velha caseira espreitou com espanto imenso todo aquele reboliço e acercou-se, temerosa, não fosse a patroa vir com ideia de vender a quinta e deixá-la a ela e ao marido ao Deus dará, depois de uma vida agarrada àquelas terras que aos da cidade longínqua não fazia falta nenhuma, ou não as teriam abandonado desde o tempo em que a memória já se perdia. Mas não, o carro vinha carregado com coisas para uma larga temporada e as ordens foram para que ajudasse a senhora a instalar-se. Mesmo assim, rondava-a com estranheza, vendo-a sacudir tapetes e virar a sala e um quarto do avesso, de modo a recuperar o espaço indispensável e, quando caiu a noite, comentou com o marido que devia ter sido grande a zanga da patroa com a vida, para ali ficar a dormir sozinha, na casa assombrada e desconfortável.
No dia seguinte o espanto aumentou quando viu chegar o canalizador, um homem para desbravar o matagal à volta da casa e o carpinteiro para remediar as trancas das janelas, num afã de renovação que deixava a mulher mais assombrada do que se tivesse visto o fantasma dos boatos. À tardinha, foi altura de irem as duas visitar com detalhe a quinta, com a caseira a indicar com reserva o caminho para chegar ao pomar e à horta sem se atolarem no riacho, que ainda corria forte naquela altura do ano.
Cada manhã esperava pela patroa a uma distância prudente da casa, como se quisesse ler-lhe no rosto vestígios do medo ou da desistência, mas não se atrevia a perguntar-lhe nada, não fosse a outra tomá-la de ponta e arranjar caseiros mais novos e menos dados a terrores do Além. Até que ganhou coragem, matou um frango da sua capoeira, assou-o com ervas da horta e, ao entardecer, foi bater à porta da casa grande, levando o tabuleiro cheiroso e quente coberto por um pano limpissimo. “Aqui tem, patroa, já que se quer acostumar ao campo ao menos aproveite das coisas boas, o meu homem pode cultivar na horta o que queira ter para a sua precisão”. Entrou com o tabuleiro a caminho da cozinha e então notou que, como por milagre, a casa respirava um novo ar, as mobílias brilhavam de limpeza, havia esteiras novas no chão, a lareira estava acesa e a mesa posta com uma das toalhas que ela tantas vezes tinha lavado no tanque, no tempo em que o patrão velho lá ia passar temporadas para caçar e distrair a solidão da viuvez. Olhou a senhora com admiração, deixando pela primeira vez escapar um gesto de ternura emocionada, “a patroa dá-me licença que lhe sirva a ceia? Sempre lhe arrumo a cozinha e além disso ando cá com uma ideia que não há meio de me sair da cabeça…”
4 comentários:
Sua marota! Deixar “a ideia” para o episódio seguinte! : )
puro marketing, Catarina, a fidelização do cliente é fundamental ;)
Como leitor hà muito fidelizado, penso poder requerer o direito a apresentar uma reclamação. Aqui vai: 5 episódios, são manifestamente pouco, cara Drª. Suzana. Em minha opinião, merecemos mais, no mínimo... uns vinte! Para além do mais, põe-se um problema de economia; não deixar que tanto talento se desperdice em somente 5 minúsculos "rebuçados".
Justifico a minha reclamação/petição, com o talento que autora sempre demonstrou possuir para escrever e descrever e ainda porque o tema é inexgotável e possível de a cada episódio, fornecer novos motivos que cativarão os leitores e, estou certo, serão motivo de prazer para a escritora.
;)
Caro Bartoleu, fartei-e de rir com o seu comentário, não me diga que quer que eu seja expulsa deste blogue por abusar da paciência dos leitores? Mas acerta em cheio quando diz que me dá grande prazer escrever, divirto-me muito a imaginar o enredo e a contá-lo, posso desenvolver o guião, que daria pano para mangas, e submeto-lho à sua apreciação, se tiver um leitor com o seu entusiasmo e generosidade já me dou por muito satisfeita :)
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