Habituou-se a ir à aldeia comprar o pouco de que necessitava e voltava para a quinta, onde tinha sempre que fazer. Tinha ganho gosto pelo cultivo da horta com a ajuda do caseiro que, vencida a desconfiança inicial, lhe prodigalizava os conselhos e ensinamentos e se perdia em conversas sobre os costumes e intrigas dos arredores. Aprendeu a ir buscar os ovos às galinhas e aceitava com modéstia as lições de culinária para aprender a usar os maravilhosos sabores do campo, além de se aplicar na reconstrução do jardim em volta da casa, em substituição do terreiro poeirento e hostil que tivera que atravessar no dia da chegada. Tinha até um cãozito, como sempre desejara, que a seguia por todo o lado e lhe fazia companhia nas horas mais lentas do anoitecer. Tinha sido difícil fazê-lo calar aquele rosnar rouco em que entrava subitamente, quando a luz vacilava à passagem da sombra misteriosa que deslizava de quando em quando, sempre ao fim do serão, a caminho do corredor fechado, mas ela via-lhe o sinal das orelhas alerta e afagava-o até passar o momento de vigília. Lutava contra a ideia disparatada de que a sombra se aninhava ali, junto à parede do candeeiro, para se lhes juntar ao serão, seriam ainda as ideias tontas da caseira a influenciá-la, devia ser certamente, mas o facto é que cão rosnava sem quê nem razão e a luz tremelicava enquanto do branco da parede se descolava de repente aquela sombra escura que nunca conseguia encontrar durante o dia.
Ligava ao marido e ao filho de vez em quando, quando descia à aldeia, contava-lhes os progressos da casa e os êxitos no cultivo da horta, queria até falar dos frutos que amadureciam, generosos, no pequeno pomar recuperado, mas do lado de lá vinham exclamações iradas, que voltasse, que se deixasse de loucuras, logo seguidas do rosário de azares e aventuras sem sentido, e desligava ansiosa por voltar à sua paz. Num dia em que regressou mais nervosa, a duvidar que pudesse por muito mais tempo levar avante a sua teima de ali se instalar, ouviu pela noite um fraco gemido, um queixume doce e triste que vinha do corredor fechado e entrava sem cerimónia no seu quarto misturando-se, confuso, com os seus sonhos inquietos.(continua)
3 comentários:
Mantem-se magistralmente gerido, o suspense que prende a atenção dos leitores.
;)
A autora, coloca em confronto, o poder dos sentimentos. Faz com que se desenrole uma batalha titânica que coloca em confronto os sentimentos mais caros ao ser humano: o amor próprio, a dignidade pessoal e o gosto pela conquista e pela vitória sobre pressupostos que muitas vezes limitam a plenitude do ser; e o amor por aqueles, por cujo conforto e bem-estar, se sente de certa forma responsável.
Palpita-me que o cachorro vai acabar por se habituar à sombra que chega ao serão e se insatala ao canto e que, aquela sombra, deixará de constituir uma inquietação e irá de alguma forma, ajudar a heroina a conciliar e a consolidar a sua relação com o mundo em que vive.
;)
"...ouviu pela noite um fraco gemido, um queixume doce e triste que vinha do corredor fechado e entrava sem cerimónia no seu quarto misturando-se, confuso, com os seus sonhos inquietos..."
Oh Suzana, olhe que já estou com os nervos em franja e, por este andar, ainda tenho que ir a uma consulta do Prof. Massano.
E peço-lhe uma indemnização por danos físicos e morais!...
Caro Bartolomeu, cá vou orientando a trama como posso, de modo a manter algum suspense, mas tenho que reconhecer a notável interpretação que consegue tirar destes escritos, visto assim até parece uma estória interessante, fico muito orgulhosa que encontre aqui o pretexto para interpretar de uma forma tão interessante este esboço de sentimentos e reações.
Ora, ora, caro Pinho Cardão, não há alma penada que faça sombra ao crescendo da crise aí sim, e que são exigidos nervos de aço!
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