Número total de visualizações de páginas

domingo, 21 de outubro de 2012

Memento mori

Uma estranha sensação de conforto, quase que diria voluptuosa, começou a conquistar o meu corpo procurando adormecer a alma. Encontrou-a. Não ofereci qualquer resistência, o silêncio da noite, quente, suave, tranquilo, inundou o mundo de paz. O pequeno écran continuava a debitar imagens e sons, que não via nem ouvia. Emergi do sono, não sei quem foi o responsável, se eu, para fugir à morte aparente ou se a morte brutal, inaudita, descrita violentamente num documentário entretanto em exibição. Descrevia o genocídio do Darfur, onde homens, partilhando a mesma religião, revelaram mais uma vez a verdadeira essência da maldade e do ódio. Estranho nacionalismo a reviver outros genocídios, Ruanda, Camboja, Sérvia, Rohingya, para falar dos mais recentes, e que violam a promessa do "nunca mais", expressão criada após o Holocausto. Nunca compreendi muito bem a essência do nacionalismo, mas presumo que é uma forma de acreditar que é possível viver fazendo parte de um grande todo. Será que é para fugir à morte? Li que a negação da morte é a forma mais eficiente para abrir a estrada à maldade, acabando por promover a separação dos grupos em "nós" e os "outros". Mas não fica por aqui, acaba, também, por fomentar o preconceito e a agressão e por alimentar e suportar as guerras e o terrorismo. Uma curiosa tese que nos obriga a pensar como deveremos abordar a morte, como a "ensinar", como a interpretar e como a viver. Perde-se na noite dos tempos as primeiras iniciativas relativas à morte, que se tornaram complexas e muito elaboradas ao longo do tempo. A morte mete medo, sem dúvida, e é bom que provoque essa sensação de finitude, porque nos dá a correta dimensão da nossa existência. É preciso conviver com ela, com naturalidade e com proximidade, coisa que acontece cada vez menos nos nossos tempos. Há um distanciamento progressivo entre o homem e o seu destino face ao único fenómeno que nos pode libertar e unir ao mesmo tempo, libertar o mundo e unir os homens ao redor dos superiores princípios respeitadores da dignidade e valores humanos. "Ensinar" a morte, conviver com a morte, aceitar a morte, dar significado à morte, "ajudar" a morte, são formas de vida que nos permitem defender sem prejuízo a morte. As consequências para a humanidade seriam imensas, facilitando a sua "aceitação" e ajudando a combater a arrogância, que muitas vezes é mortífera. Não sei se esta observação não terá sido já tomada em conta aquando das "marchas do triunfo" em Roma. Na altura, o herói, o general, ao entrar na cidade com os seus homens para recolher as aclamações das vitórias, era seguido de um escravo que lhe papagueava: ao ouvido, "memento mori", "memento mori", a lembrar a sua temporalidade e a refrear o efeito inebriante do passeio vitorioso. Verdade? Fantasia? Não interessa, o que interessa é relembrar o "memento mori", "lembra-te de que és mortal". Precisamos de alguém que começa a andar atrás de muitos "heróis" lembrando-lhes, senão a todo o momento, o maior número possível de vezes, "lembra-te de que és mortal", "lembra-te de que és mortal". Não é traumatizante, e poderia ajudar muito, com toda a certeza, mas...

2 comentários:

Bartolomeu disse...

Einstein foi consumido pela mesma inquietação, os limites não se acham confinados aà relação espaço-tempo.
No entanto, caro Professor, ao que parece, a nossa existência acha-se limitada temporalmente a um espaço e a um tempo definidos, enquanto a nossa mente, a nossa psique, o nosso raciocínio, não conhecem fronteiras nem amarras e colocam ininterruptamente questões que vão até ao infinito, ou mesmo para além dele.
Existimos tempo insuficiente para encontrar a enésima parte das soluções para as questões que nos atormentam a alma.
Por isso, talvez, Cristo ensinou aos homens a fantástica oração Pai-Nosso e o verso «O pão nosso de cada dia nos dai hoje». Ou seja, como o filho pede ao pai, o alimento para o corpo, Cristo ensinou-nos a pedir-Lhe o alimento para o espírito e para a alma, por forma a que não enfraqueçam e percam a capacidade de colocar ao espírito, incessantemente, as questões que os atormentam, mas que os fazem crescer, e tornar-se mais puros.
Isto, é uma opinião pessoal, para a qual não possuo forma irrefutável de provar.
;)

Massano Cardoso disse...

Um tormento e que tormento! Tem razão Bartolomeu.