Lembro-me perfeitamente a primeira vez que o vi. Início de uma tarde de primavera; céu muito transparente, ar cristalino, puro e frio a querer limpar as tristezas da vida. Leito estreito, verduras a bordejar as delicadas margens, magotes de longos cabelos verdes ondulando à sua passagem, uns debaixo da água, outros aflorando como querendo resfolegar. Limpo, muito limpo como qualquer um ao nascer. Assim era aquele esboço de rio despejado docemente das entranhas da serrania envolvente. Inocente. Ao final da tarde, atraído pela sua beleza, voltei ao lugar, meio mágico, vazio de humanos mas cheio de encantos. Tinham-me dito que só corre assim durante um breve período de tempo. Chegado ao fim da primavera começa a secar e no verão desaparece, regressando no ano seguinte, mas só depois dos ventres escondidos e vazios da serra se encherem com as águas das chuvas do inverno, que matam a sede sôfrega dos quentes calcários. Passado um ano revivi a beleza do seu renascer, que se tem perpetuado ao longo dos tempos, maravilhando os que sabem ler os seus sinais, os seus anseios, as suas esperanças e, ao mesmo tempo, criando uma atmosfera de ansiedade face ao caminho que irá mais uma vez galgar, silenciosa e solitariamente. Agora que o outono começa a dar pequenos passos, houve alguém que se lembrou de rasgar e cimentar o seu leito e, não satisfeito, emparedar as margens, impedindo o contacto fisíco com a flora verdejante que ambos anseiam todos os anos realizar como se tratasse de um longo e carinhoso amplexo amoroso. Malditos humanos, frios, distantes, insensíveis, capazes de quebrar uma aliança de milénios a pretexto de algo que não sabe explicar. Intromete-se onde não deve. É o caso deste rio que, ao nascer, puro e doce, se vai ver envolvido pela mão humana em camas artificiais e aprisionado por frias paredes, roubando-lhe a liberdade e a identidade, como se tratasse da fonte de um qualquer tanque de rega, que irá aprisionar as águas para apodrecer no verão. A loucura de uns irá provocar a ira de águas que só querem correr quando lhes interessa. Aprisionar um jovem e delicado rio à nascença? Para quê? Para deleite de quem? Dos que pretendem ver um espelho de água? Para poderem passear pelas suas margens? Se for para ver a verdadeira beleza, mais valia esperar pela primavera e, ao início ou ao final da tarde, debruçar-se e escutar o que ele tem a dizer...
1 comentário:
Caro Professor Massano Cardoso
O cimento deu cabo deste país! Acompanho completamente o seu grito de revolta e tristeza. O país não está nada bem.
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