Há tempos, entrei na livraria, peguei num livro e sem o abrir levei-o para casa. Um impulso como qualquer outro. Não sei o que é que me deu naquela noite, foi o título, sem dúvida, falava de comboios e purgatório, duas coisas com as quais tenho uma estreita relação, adoro comboios e abomino o purgatório, e o título dizia: "Os comboios vão para o purgatório". Como é que algo que faz parte da minha vida vai para aquele espaço esquisito onde as almas têm de penar até poderem subir ao céu. Não sei se ainda existe ou se já sanearam aquele conceito, o que eu sei é que em pequeno incutiram-me de tal modo aquele espaço cinzento e intemporal que cheguei a preferir o inferno, sempre é mais colorido e menos insípido.
Foi nesta obra que ouvi pela primeira vez falar do Cristo de Elqui, uma personagem real que marcou a primeira metade do século passado o Chile. Chamou a atenção dos clérigos, dos governantes e sobretudo de muito povo que o via como o Messias. Ao chegar a Santiago foi detido e enviado para o manicómio. Diagnóstico: delírio místico crónico. Passados poucos meses foi libertado e considerado são, continuando na sua delirante missão. Não havia ninguém naquela parte do mundo que não conhecesse tão estranha pessoa, de barbas longas e unhas compridas, apenas as das mãos, envolto por uma grosseira aniagem, e que pregava de maneira muito original, muitos ouviam-no. Esta poderosa personalidade estimulou a criatividade de alguns autores e poetas. Na obra de Letelier há uma passagem que não esqueço. Uma pobre mãe verifica que a sua esquálida e doente criança acaba de morrer. No tumulto, alguém se lembra de que o Cristo de Elqui tinha entrado na última paragem com os seus apóstolos vadios. Correm à sua procura e trazem-no perante a criança para que a ressuscitasse. Todos esperavam ver o milagre. O Cristo de Elqui debruça-se, concentra-se, esperando que a alma volte ao corpo. Passados uns momentos, dá-se conta de que não consegue miracular, dizendo em voz alta, e tristemente, não consigo, só o meu Pai é que consegue. Voltou a aparecer noutra obra do mesmo autor, "A arte da ressurreição", mas aqui com o estatuto central, ao redor do qual orbitam figuras fortes, estranhas e profundamente humanas.
Nicanor Parra, poeta chileno, criador da "antipoética", escreveu também obras apócrifas de Cristo de Elqui, delírios poéticos, como alguém as rotulou. Deu-me para ler "Serones y predicas del Cristo de Elqui". E porquê tudo isto? Por ter ouvido a notícia da acusação de homicídio de uma figura pública, por causa de uma outra em que um casal perdeu a guarda da filha por serem velhos demais, ele com setenta anos, ela com cinquenta e sete e que, graças a óvulos doados, acabaram por "produzir" uma menina. O tribunal considerou que "os pais foram egoístas e narcisistas", além da "aplicação distorcida das enormes possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias". Mas o rol de notícias não ficou por aqui, crianças metidas em gaiolas de cães, outras abusadas por adultos, e sempre que olhava para o quer que fosse surgia sinais evidentes de delírios e desvarios. Durante uma consulta, um jovem, que não tinha transposto os trinta anos, apresentava uma extensa tatuagem no braço esquerdo, abstrata, dita "biomecânica". Perguntei-lhe: - Qual a razão desta tatuagem? - Nada de especial. Gostei. Ao retirar a camisa, vi que também tinha mais três no braço direito, duas figuras e uma palavra desenhada com letras góticas, Micas. - Micas? - Sim. - É o nome da sua namorada? - Não. É da minha cadela! E estas duas são símbolos de, não percebi bem, mas fiquei a saber que eram de bandas heavy metal. Ficou muito surpreso por não conhecer as bandas! E eu fiquei surpreendido por ver tatuado o nome de uma cadela. Empatados. Chego a casa, e antes de almoçar, vejo um pouco do programa "Praça da Alegria". Qualquer coisa sobre uma mama, cancro, operação, reconstrução, algo que não terá corrido bem, acusação de negligência, chamada da televisão, queixas e mais queixas, exploração patética dos apresentadores, confusão, mais confusão, opinião de um cirurgião plástico, entrevista em direto ao diretor do hospital em questão, posição do diretor, sensata, correta, exaltação da entrevistada, refutação, acabando por mostrar ao público a mama direita com as tais alterações dérmicas. Nem queria acreditar, delírio televisivo. Tantos delírios e tantos desvarios! Delírio por delírio prefiro o delírio místico do Cristo de Elqui, o delírio poético de Letelier ou o delírio lírico de Nicanor Parra, sempre evito ser atingido por certos delírios e ter de acabar os meus dias no purgatório...
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