Trôpego, arrastando os pés, como é próprio de quem tem o privilégio de chegar a idades avançadas, conseguiu galgar a escadaria, demorando mais tempo que o habitual, antecipação de um final que tento esconjurar todas as vezes que o vejo, e já o vejo há mais de vinte e cinco anos, quando sofreu um acidente vascular cerebral. Nada fazia prever que conseguisse sobreviver tantos anos, mas recuperou; ainda bem, para seu contentamento e dos familiares, e também para mim, porque acabei de conhecer muitas e divertidas histórias. O riso, ultimamente, é diferente, mais intenso, menos controlável, incapaz de o desligar, como se tivesse sofrido um curto-circuito, intensificando-se alegremente quando me meto com ele. Subitamente, os ombros começam a tremelicar, libertando sons de felicidade, com tendência a prolongar-se no tempo, sinal de que o córtex frontal já não é o que foi em tempos. - Então, como vai isso? O momento e a pergunta obrigam-no a ter de fazer um esforço para que a expressão facial se ajuste à situação. Não consegue completamente, embora uma mão invisível tente rodar o reóstato do riso, baixando-o até a ponto de conseguir aquilo que poderá ser considerado o mais próximo do estado normal. Ao atingir este estado, baixa a cabeça, e os seus olhos, embaciados, conseguem transmitir alguma tristeza e ansiedade quanto ao futuro. Um pequeno compasso de espera e a síntese do seu pensamento fica bem expressa: - Oh, estou a dar a côdea, senhor doutor. Estou a dar a côdea. Não é a primeira vez que lança esta expressão, que nunca ouvi a mais ninguém. Da primeira vez, fiquei um pouco surpreso, mas não me foi difícil chegar à conclusão quanto ao significado, atendendo à pergunta e à situação. - Dar a côdea? Outra vez? Dar a côdea, porquê? Já não tem miolo? Olhe que a sua côdea deve estar muito dura e não vejo quem é que a possa comer. Ao ouvir as minhas palavras, desprendeu-se da posição cabisbaixa e soltou um sorriso, simultaneamente alegre e interrogante; pelo menos esqueceu-se do sentimento de apreensão que a idade, a doença e a degradação continuada lhes estão a provocar.
Dar a côdea, dar a última coisa que se tem para matar a fome. Pão, sinónimo de vida. Ao vê-lo, à noite, em cima da mesa, a atrair a minha atenção, tentei resistir-lhe e lembrei-me deste pequeno episódio, mas, para matar saudades, ingeri uma pequena porção da broa, comendo precisamente a côdea, deixando de lado o miolo. Um pouco dura, mas não tão dura como algumas vezes tive oportunidade de verificar noutros tempos, em que era senhora e rainha da alimentação do povo. De súbito, muitas imagens e sensações foram despertadas, desde sabores escondidos a pequenos episódios, como a de uma sardinha embrulhada em broa, cujo aspeto amarelado se intensificou com o sumo oleoso provocando uma combinação gustativa muito difícil de repetir; o ritual da compra que a meio da tarde ia fazer a uma vizinha ou, então, ver as mulheres a cozinharem no forno, depois de assistir a práticas meio religiosas e meio pagãs, que não mais se repetem e que me marcaram. Não desgostava do miolo da broa, mas preferia a côdea, dura, saborosa, grossa, exigindo cuidado para não dar cabo de algum dente, que, depois de domesticada, deixava um travo de prazer que se arrastava no tempo. Foi pena não ter recordado estes episódios durante a tarde, quando ouvi a expressão "dar a côdea". É natural, certas lembranças têm mais força quando despertadas pela boca. Foi o caso. Se um dia destes ouvir novamente "estou a dar côdea", então terei de responder: - Muito bem, então dê-ma, sempre gostei de côdea, ao menos não me faz mal, desperta-me sensações únicas e é fonte de lembranças que alegram a vida...
1 comentário:
Mais um belíssimo "naco" de prosa, caro Professor!
Falo em "naco", pois me parece vir a propósito quando o tema do Post é a "codea"!
A codea é parte integrante do naco de broa...ou era, em idos tempos!
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