A comunicação social tem, nos últimos tempos, vindo a substituir as revistas científicas, órgãos privilegiados para publicar os estudos de investigação. Confesso que esta mudança de paradigma começa a causar alguma perturbação pelo eventual impacto no comportamento das pessoas. Pode-se sempre afirmar que é uma maneira correta de transmitir o conhecimento, contribuindo para o bem-estar das comunidades. Mas será mesmo assim? Não haverá necessidade de um período de debate e de reflexão na comunidade científica antes de informar o mundo o que é que se está a passar de facto? As conclusões dos estudos não serão demasiado prematuras? Não poderão condicionar, por vezes, de forma irreversível, certas atitudes e comportamentos? Temo que sim. Esta minha reflexão surge na sequência de uma notícia em que os autores verificaram que "Quase metade das crianças em idade pré-escolar tem alojada no nariz uma bactéria, responsável por vários tipos de infeções. Destas, 9% são portadoras de uma estirpe resistente a antibióticos". Os autores concluem pela necessidade de instaurar medidas higiénicas para evitar problemas, nomeadamente a necessidade de "lavagem das mãos com frequência e sempre depois de assoar o nariz a uma criança, não partilhar lenços, nem guardá-los nos bolsos depois de usados são algumas das regras que todas as escolas devem instituir. É também aconselhável lavar e desinfetar frequentemente os brinquedos e arejar bem os espaços."
Não tenho nada contra as medidas higiénicas, aliás considero-as como as principais responsáveis pela conquista da saúde e da longevidade humanas. O que me preocupa é a tendência crescente da higienização como se o ser humano devesse evitar contactar com o fabuloso mundo dos microrganismos, vivendo num ambiente permanentemente assético, qual sala de cirurgia. A interiorização de certos conceitos pode ser perigosa. Um dos grandes perigos da atualidade tem a ver com o excesso de cuidados, que está na base de crescentes problemas de saúde, etiquetadas como o paradoxo da higienização. Temo, face à forma com são noticiadas certas pesquisas, que muitos concidadãos possam levar demasiado longe algumas das medidas de higiene enunciadas. Neste caso concreto, estafilococos resistentes a antibióticos, alguns pais ainda poderão, um dia destes, solicitar informações adicionais sobre a prevalência das ditas bactérias nas ventas das criancinhas frequentadoras do estabelecimento escolar. Um diálogo deste género poderá vir a ser real: - Desculpe, mas como pai (ou mãe) responsável queria saber qual a prevalência do estafilococo MSRA (resistente a antibióticos) nos narizes dos meninos que frequentam a escola. Sabe, eu não quero que o meu filho venha a ser contagiado com essa bactéria, correndo o risco de poder sofrer uma infeção com um gérmen resistente aos antibióticos. Também quero saber se disponibilizam lenços de papel não utilizados pelos outros meninos. O meu filho tem tido uma educação muito higiénica. A conversa deverá continuar à volta da assepsia ou coisa que o valha. Entretanto, o puto, de mão dada com o pai, indiferente à conversa de chacha, e que o ultrapassa de todo, faz aquilo que qualquer miúdo em certa idade costuma fazer. Mete o dedo no nariz, tira um valente macaco e mete-o na boca para se deleitar com o seu doce sabor, borrifando-se para as toneladas de estafilococos, sejam ou não resistentes aos antibióticos, respeitando, escrupulosamente, as regras da vida, ou seja, o contacto com o mundo envolvente, indiferente ao discurso assético, melhor, patético dos pais, temerosos das bactérias, porque leram qualquer coisa sobre esta matéria e não estão dispostos a partilhar este mundo com essas miseráveis, execráveis, estúpidas e abelhudas formas de vida. Coitada da dirigente da escola a ter que buscar à pressa, meio atarantada, os últimos relatórios provando que as meninas e os meninos da instituição são verdadeiros exemplos de pureza microbiológica. Pois é, pureza microbiológica, pureza política, pureza social, assepsia de ideias, enfim, a estupidez acaba sempre por vingar...
2 comentários:
Coitados, ainda não conhecem os hábitos "higiénicos" naturais e gourmet, q.b., do teu neto... ;)
Há tempos tive a visita de um casal americano que veio com a filha, uma garota de 5 anos, muito engraçada, que se encantou com um caracol que apanhou no jardim.à saída, ela não largava o caracol (sempre metido na casca, é claro)mas a mãe lá a convenceu que era melhor deixá-lo no jardim onde ele vivia, e disse-lhe para se despedir dele. A garota, muito aflita, disse que queria dar-lhe um beijinho mas era perigoso para o caracol, porque "it would get my germs". Assim mesmo, os "germes", uma criança de 5 anos,fiquei alarmada com a formatação daquela cabeça.
Enviar um comentário